quinta-feira, 8 de setembro de 2016

THE AMBULANCE, DE GORAN RADOVANOVIC – DESENCANTOS DE UM PAÍS E DE UMA IDENTIDADE

ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA
O Teatro de Vila Real apresenta, nos próximos dias 20 e 21 de setembro, um ciclo de cinema dedicado ao realizador sérvio Goran Radovanovic. Encontrei, nesta proposta cultural, um pretexto para partilhar convosco algumas palavras sobre o filme que será transmitido na primeira noite do referido ciclo: The Ambulance. Daqui a quinze dias, partilharei convosco outras tantas palavras sobre o filme da segunda noite!

O que vos apresento é o meu olhar e é uma maneira de vos aguçar o apetite e de vos convidar a decifrar os mistérios e os desencantos de uma realidade recente, num país e numa cultura que ainda nos são desconhecidas!

A sequência inicial de The Ambulance (Goran Radovanovic 2009) projeta o forte caráter documental desta aventura ficcional. O Serviço Nacional de Ambulâncias protagoniza uma lúcida reflexão acerca das recentes profundas mudanças na sociedade sérvia. O universo da ambulância torna-se metáfora de mudança. Uma mudança no espaço e no tempo e um percurso identitário através de desencantos, paradoxos e indiferenças fraturantes, à procura de um sonho.

A ambulância, através do olhar sofrido e intraduzível de Vera e de Goran, percorre as manifestações e as revoltas contra Milosevic, está presente durante a queda do ditador, assiste às reivindicações perante os novos valores e é testemunha das exéquias do primeiro-ministro assassinado. Está presente nos momentos inevitáveis da morte.

The Ambulance define olhares de transição, esbate fronteiras entre documentário e ficção e é o espelho do inevitável desencanto após o fim dos totalitarismos.

Projeta o profundo desencanto de Simo Loncar que, fardado com o uniforme do antigo regime, frente ao símbolo de um socialismo perdido, transmite um olhar de sofrimento, de raiva e de mistério perante o presente que o atordoa. Os grandes planos do rosto dele ao lado do autocarro incendiado definem o seu profundo desencanto e a fratura de um país que ele não compreende: um país que arde dentro dele. O serviço nacional de ambulâncias torna-se o suporte cognitivo quando ele apresenta dúvidas psíquicas e físicas relacionadas com um suicídio que deseja mas que não consegue concretizar. A ambulância não o satisfaz nessa demanda e também chega tarde ao campo de refugiados, não conseguindo evitar o suicídio de um outro desencantado.

Tatiana Loncar, a filha de Simo, é outra personagem do desencanto. Como apresentadora do jornal televisivo, ela projeta os ideais de Milosevic, ataca violentamente a presença da NATO na Sérvia e sofre, ao lado do filho, todo o processo depurativo após a queda do ditador. O rosto de Tatiana, muitas vezes em grande plano, torna-se outro símbolo do desencanto revolucionário.

Ao lado deste desencanto, ao lado dos rostos desesperados, surge um rosto de um miúdo, vestido com uma camisola do Partisan de Belgrado, refugiado do Kosovo que, inserido numa montagem extremamente acutilante, engloba as imagens documentais de êxodos e bombardeamentos. O menino tem, nas sequências iniciais, um olhar enigmático e intraduzível. Chora serena e incessantemente… é o menino das lágrimas.

Perante o desencanto, a revolta, os tumultos, a guerra, os êxodos, o desespero, a proliferação dos campos de refugiados e as exéquias de uma promessa política, a ambulância projeta uma indiferença fraturante e quase inevitável. Quando Simo Loncar confessa a sua incapacidade para o suicídio e a sua urgência de conhecimento, os serviços de atendimento revelam uma indiferença total, projetando um intenso paradoxo, uma subversão do processo e do momento. No segundo telefonema, quando pede a quantidade conveniente de comprimidos para o suicídio, as respostas exatas e a banalização do atendimento são atrozes. A mesma indiferença atroz com que Vera e os colegas enfermeiros esperam que o utente morra, rodeado da família, para de seguida o transportarem.

Existe a mesma atrocidade e a mesma indiferença na sequência em que a ambulância arranca para uma emergência, com a porta de trás aberta, deixando cair uma maca vazia. Na ambulância que arranca de portas abertas está a confusão da mudança e a procura desenfreada e sem limites de uma nova identidade.

Uma nova identidade que se reconstrói num conjunto de contrastes: o contraste entre o desenho forense do potencial suicida Simo Loncar e o plano da criança, alegre, saltando à corda em cima dele; entre o desespero rastejante de Simo na sofreguidão das caixas de medicamentos e o olhar sereno de Nada na sua cadeira de rodas.

The Ambulance é a presença de uma identidade que se quer reconstruir lentamente como os gestos excessivamente lentos da família que, no armazém, recebe a ajuda humanitária da Nações Unidas: um processo de sofrimento e de solidariedade, numa comunhão serena sem atropelos e sem pressas.

É a identidade serena do menino das lágrimas a rezar o Pai Nosso, a denunciar o milagre desejado, a orfandade e o exílio que a guerra lhe impôs. É uma identidade expressa no olhar intenso e enigmático do menino das lágrimas: uma identidade perdida simbolizada no barco insuflável em que dorme no campo de refugiados.

O mistério das lágrimas é o percurso de uma identidade expressa na montagem exímia entre o plano da chuva, o das lágrimas e o da água a cair na bacia. A identidade e a procura de um sonho. Será o menino das lágrimas o olhar de Goran Radovanovic?

Existe no filme, um sonho de mudança, num mesmo tempo e num mesmo espaço. Um sonho que parece não existir quando Nada tem consciência das suas limitações físicas mas que renasce quando ela fala da ligação inevitável e intrínseca que a une às duas janelas libertadoras: a da internet e a da casa, virada para o bulício da rua.

É um sonho que parece não existir num chão pavimentado de quadrados brancos e pretos (um tabuleiro de xadrez onde se joga a vida e a morte) da morgue, revoltada e desencantada, de Tatiana mas que renasce num mesmo pavimento de quadrados brancos e pretos do Observatório de Belgrado onde Vera quer ver um asteroide com o nome de Sérvia e onde Nada sonha com o poder curativo das lágrimas do menino.

No percurso onírico do Observatório, o menino das lágrimas liberta-se do olhar triste e enigmático e sorri. Reencontra a sua identidade. Foi difícil mas conseguiu: foi bem mais fácil vestir a camisola de um outro clube! E as lágrimas curativas projetam-se, no travelling final, através da escada em obras, na construção de uma nova rampa para Nada.

O travelling pela escada e a presença da rampa é o percurso da construção de um novo país com jogos de novelos e fios que se cruzam num intenso multiculturalismo onde os momentos do conflito e do exílio se transformam numa identidade tranquila, sem os solavancos da câmara subjetiva de Nada e sem as ambulâncias do socorro e do urgente…

Sem comentários:

Enviar um comentário