terça-feira, 27 de setembro de 2016

A FAMÍLIA PRUDÊNCIO NO SÉCULO XXI

JOÃO PAULO PACHECO
- Boa tarde!
- Boa tarde, como vai o senhor?
- Bem, obrigado.
- Sabe, eu penso que o estou a reconhecer, mas não me recordo de onde…
- Muita gente me diz a mesma coisa, sabe? No final dos anos cinquenta, no início das emissões da RTP, em 1957, eu e a minha família ficámos conhecidos de quase todo o Portugal, devido ao programa TVRural, do engºSousa Veloso, que era transmitido em horário nobre, sobre os cuidados a ter com o manuseamento dos pesticidas e dos lixos gerados nas explorações agrícolas. Naquela época, qualquer programa de televisão chegava à quase totalidade da população. Só havia um canal e toda a gente via a mesma coisa.
- Exactamente, é mesmo daí que eu o reconheço. E como vai a família?
- Tudo bem, felizmente. O meu filho já está reformado. Trabalhou uma vida inteira como condutor de pesados, não quis seguir as minhas pisadas, de forma que a agricultura foi sempre sobrando para mim e para a velhota. A minha mais nova casou e foi para a Alemanha com o marido já há mais de 30 anos e nem pensa em voltar…está por lá, também já se reformou, nunca teve filhos mas ela e o marido têm uma vida boa, desafogada, e ainda nos vão ajudando de quando em vez, e no Natal, ano sim ano não, passam cá uma temporada.
- E o marido dela…
- É alemão! Por isso é que dividem os natais entre um ano cá e outro lá.
- Ah, entendo…e então o senhor não tem netos? Ninguém para tomar conta da casa agrícola?
- Olhe, o meu rapaz, agora com quase setenta, teve dois filhos. A mais velha formou-se em História.
Claro está que o destino foi ir dar aulas…mas não foi fácil! Nos primeiros anos da carreira só conseguiu colocação nos Açores. Depois, passados uns cinco ou seis anos, lá conseguiu colocação numa escola perto de Bragança, a quase 500km de casa. Agora, e já vai para quatro anos, está desempregada, não tem conseguido colocação em lado nenhum, já nem nas ilhas. O rapaz, esse felizmente está bem. Continua solteiro; deixou a escola depois de fazer o nono ano, foi trabalhar para um amigo da família ligado à construção civil, depois instalou-se por conta própria e ainda é o que faz, e tem tido êxito, pelo menos não lhe tem faltado trabalho, o que nos dias que correm…
- É bem verdade, haver trabalhinho já não é nada mau. Agora a sua neta é que deve estar numa situação complicada, pois… 
- Olhe, vive connosco, sabe? Quando lhe acabou o subsídio de desemprego, há coisa de ano e meio, e como ainda estava com menos de quarenta anos, decidiu ela instalar-se como jovem agricultora, fizemos uns melhoramentos na quinta, montámos umas estufazitas e a rapariga sempre tem com que se entreter e vai dando para sobreviver. Na verdade, quem acaba por fazer o trabalho todo sou eu e a minha velhota, que a rapariga não tem mesmo queda nenhuma para a agricultura. Enfim, foi o que se pode arranjar, e sempre se aproveitaram uns subsidiozitos.
- Pois muito bem, muito bem, o tempo passa…não é verdade senhor Prudêncio? E diga-me, o que o traz por aqui?
- Olhe, vinha buscar uma embalagem do “mata-sete” para botar na vinha. A marca do costume.
- Já não temos esse produto, já saiu do mercado vai para dois anos. O que temos agora é este aqui ( e mostrou-lhe um frasco que tirou duma prateleira mesmo ali por baixo do balcão). Mas repare, este mata tudo o que o outro matava, até mata mais, tem um espectro mais amplo, compreende-me? E é mais baratinho do que era o outro…
- Quer dizer que o “mata-sete” custava dez e este “mata-dez” só custa sete? Isto até parece uma história mal contada.
- É verdade, Sr Prudêncio, disse o lojista rindo-se. E então, vai levar só uma embalagem ou quer mais?
- Não, não. Levo só uma e quando precisar de mais, volto cá a buscar, que até é um pretexto para vir à vila.
- Sim senhor, disse o homem da loja enquanto metia o frasco dentro dum saco de plástico. E o cartãozinho, trouxe consigo?
- Mas qual cartãozinho? Vou pagar em dinheiro! 
- Não me refiro ao Multibanco, preciso é de tirar o número do seu cartãozinho de aplicador de pesticidas. Sabe que agora somos obrigados a pedir o cartão e a registar tudo.
- Oh homem, mas eu não tenho cartão nenhum disso. Realmente na cooperativa perguntaram-me se eu não me queria inscrever num curso desses de aplicação dos venenos, mas eu tenho mais o que fazer, disse-lhes a eles que essas coisas agora eram com a minha neta.
- E ele fez o cursinho?
- Fez, teve que fazer…não lhe pagavam a última fatia do prémio do projecto sem ela fazer o curso e ela teve de fazer.
- Ah, bom, então agora é ela que percebe destas coisas e que faz as aplicações?...
- Acha que sim? Não percebe nada…nem sabe fazer as contas ao que deve “botar” na calda, quanto mais pegar no pulverizador e andar ela a aplicar…
- Compreendo, compreendo. Realmente, estes cursos é mesmo só para cumprir com as regras da comunidade e mais nada. Mas olhe, fazemos assim: o senhor leva o frasquinho, faz lá a aplicaçãozinha que tem de fazer e peço-lhe o favor de, assim que possa, passar aqui com o cartãozinho da menina para eu guardar aqui uma cópia e emitir-lhe a facturinha no nome dela, pois imagino que agora tenha a contabilidade no nome dela por causa do projecto…
- É isso mesmo, ‘tou a ver que o senhor está a par destas coisas…
- Temos de estar…senão somos ultrapassados e lá se vai o negócio! Fico então à espera que passe cá com o cartão da sua neta, combinados?
- Combinados, muito obrigado e tenha uma boa tarde!
- Igualmente para o senhor…e a si eu nem precisava de dizer isto, mas não se esqueça de ler primeiro o rótulo, eh eh….

(Mesmo depois de uma vida de cigarritos a acompanhar a aplicação dos pesticidas, o avô Prudêncio ainda é quem empurra a exploração prá frente!)

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