Uma conversa privada com Deus, sim, porque não?
MANUELA VIEIRA DA SILVA |
Tenho conversas com Ele, com a almofada, com as paredes, de todos os modos – em voz alta, em voz estridente, ou a falar baixinho para que ninguém oiça os meus intemporais monólogos, por vezes insanos, ou então em profundas reflexões, que, se os registasse, já teria em gravação toda a minha vida, com factos, medos, culpas, alegrias, tristezas, amor, amizade, arrependimentos, saudades… enfim, todos os sentimentos e todos os pensamentos que se perdem no tempo e que são absorvidos pelo espaço e pelo ar e nem eu sei para onde vão. Poderia ter escrito vários livros com os registos, com um gravador escondido no bolsinho do vestido (efectivamente não gosto de microfones), ou dentro do «soutien». Poderia ter um registo mental em ficheiros que se descarregassem como no computador. Poderia ser autora de best-sellers, quem sabe? Mas nada tenho registado e nenhum livro publicado.
As paredes do escritório são de cor clara. Dizem que as cores claras absorvem a luz e o calor, talvez aborvam também pensamentos e as conversas que tenho com Deus, ou com elas… Se as palavras se contiverem talvez pudesse subtraí-las com um decapante… e as emoções jorrariam nas suas diversas cores pelas paredes, que guardaria em negros frascos de cristal opaco, devidamente acondicionados e protegidos.
Os pensamentos chegam e partem como o vento, umas vezes brisa, outras vendaval; apesar de a maioria não ficar na superfície da memória, outros há que ficam teimosamente mesclados de emoção.
Foi noticiado recentemente um acontecimento que me provocou uma catadupa de memórias de pensamentos antigos, já macerados e devidamente limados, ao longo do tempo, dos excessos que temperam a emoção. Confesso que me chocou ver e ouvir tal notícia na televisão sobre os Comandos da Amadora, que, já nos idos anos 80, tinham fama de ser tropa violenta para quem lá entrava, contra-indicada para «fracos e homossexuais».
Há situações pelas quais tenho passado que, mesmo que não queira fazer julgamentos, a tendência é fazer associações dos factos ocorridos, que me levam a conclusões que preferia nem pensar.
Na idade própria, os rapazes tinham a obrigação de cumprir o serviço militar, e o meu irmão Luís não foi excepção a responder à chamada. Registou-se por obrigação para que não fosse considerado fora-da-lei mas, em contrapartida, adiou o máximo de tempo que pôde para se apresentar. Entretanto, não querendo fazer a tropa, talvez porque soubesse que ali não era lugar para ele, doente com hepatite C, sofria de vez em quando de ataques epilépticos, estava muio magro e a sua tez, de um pálido de hospital… e era homossexual. Fez exames para, quando chegasse a hora, os apresentar e talvez poder ficar livre da tropa, dando-lhe um pouco de esperança alimentada de uma profunda ansiedade. E não era para menos. Chega finalmente o resultado: Aprovado. Pronto.
A angústia que sentiu era demasiada e a vida de projectos, de actividades que tinha sofrem um desvio brutal. O seu estado psicológico abre o caminho para um abismo do qual não sabia o fim. Desorientado, começa a ter amizades que ainda mais o desencaminham, além dos pensamentos contraditórios a toda a hora: «até pode não ser tão mau…», ou «e se…, e se….», não sabendo ainda para onde iria dentro do Exército.
Até que chega a colocação: Comandos da Amadora.
O choque foi incomensuravelmente violento, para ele, para mim, para todos. Não vou fazer uma descrição dos dias seguintes, porque isto não é ficção, foi realidade e, vivendo em minha casa, quase nunca o via, levantava-se cedo para ir trabalhar, chegava de madrugada para dormir umas poucas horas. Adivinha-se, pelo que aconteceu a seguir, o que um rapaz de 19 anos, homossexual, fraco de constituição física, delicado nos seus jeitos e no estar na vida possa ter sentido.
Oito dias antes de se apresentar para inicar a recruta, a uma sexta-feira, o Luís não dorme em casa. Deixa a carteira com a identificação no quarto e a agenda dos contactos. Dei-me a mim própria e a ele duas ou três horas, antes de pegar na agenda e ir telefonar a toda a gente. Ninguém sabia dele. Tinha uma reunião nesse sábado à qual não compareceu.
Porquê?
Toda eu desfaleci num grito.
Tive de sair à rua no final da tarde, de lágrimas nos olhos, combalida, de semblante triste e desolado como a morte… alguém me pergunta o que tenho, ao que respondo não saber do meu irmão. A pessoa informa-me que tinham encontrado um corpo ali perto e que a polícia o levara. De imediato telefono à polícia e pela descrição do vestuário e de um anel, consegui confirmar que se tratava mesmo do Luís. (Seria mais um na estatística dos desaparecidos.)
Por razões óbvias e de espaço, não farei o relato dos dias seguintes. Foi suicídio por envenenamento.
Tive muitas conversas com Deus, zanguei-me com Ele, com o mundo, comigo. Nada fazia sentido à minha volta, o desprezo pelos outros durou algum tempo. Não entrei no quarto do Luís durante mais de seis meses, mantendo-se tudo no mesmo lugar, sem nunca abrir a porta. A minha vida e a da nossa mãe não voltou a ser a mesma.
Talvez um dia as minhas palavras se libertem das paredes e a emoção que ainda hoje sinto sejam gotas purificadas pelos olhos de Deus.
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