segunda-feira, 12 de setembro de 2016

REFLEXÃO EM TORNO DO FAZER POÉTICO "VIDA-MORTE"

«Eu sei que determinada rua que eu já passei, não tornará a ouvir o som dos meus passos; tenho uma revista que eu guardo há muitos anos e que nunca mais eu vou abrir.
Cada vez que me despeço de uma pessoa, pode ser que essa pessoa esteja me vendo pela última vez.
A morte, surda, caminha / a meu lado / e eu não sei em que esquina / ela vai me beijar...
(...)
...vou te encontrar vestida de cetim / pois em qualquer lugar esperas só / por mim, e no teu beijo provar o gosto / estranho que eu quero e não desejo, / mas tenho que encontrar...
(...)»
Canto para minha morte (musical) por Raul Seixas
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ALVARO GIESTA
Se a arte imita a vida, ou a vida imita a arte, temos aqui, neste vídeo musical, a prova de que a arte também imita a morte ou, ao contrário, a morte imita a arte. Um dos "papéis" da arte poética é expressar sentimentos humanos e transmitir, de forma subjectiva, aspectos da nossa realidade: medos, angústias, anseios, desgraça, pobreza, tudo quanto seja marginal e que, a maioria dos nossos poetas de hoje fogem a retratar. Com medo? Medo a quê? Medo de quem?
O novo, o desconhecido, é algo que nos assusta enquanto seres humanos em quem o receio está presente, em quem a expectativa é uma constante aliada ao medo da dor e da dor na morte que ela nos possa causar. E como vamos nós pensar nesse desconhecido que começa onde a vida acaba e a morte começa?

[Já em tempos, faz muito em breve um ano, lavrei aqui crónica subordinada ao tema «O RETORNO AO PRINCÍPIO» (numa dialéctica Vida-Morte), que acabaria por dar título a obra poética minha escrita pelo pseudónimo Alvaro Giesta e publicada em Maio de 2014 pela Calçada das Letras, Lisboa. Esta obra nasceria sob os auspícios dum ensaio que eu, como ortónimo Fernando A.A. Reis produzi, no ano tertuliano 2013/2014, para o então Clube Literário KAFE-KAFKA, na cidade de Queluz, a que na altura pertencia. Ensaio que apenas ficou conhecido, aquando da apresentação em 15 de Dezembro de 2013 no meio restrito do dito clube e alguns (poucos) amigos que ao evento assistiram e que mereceu o 1.º prémio "Melhor Guião Literário KAFÉ-KAFKA 2013/20134".
Agora, numa narrativa mais profunda do que antes aquando da crónica a que atrás fiz referência lavrada sob o pseudónimo que habitualmente uso quando escrevo, aqui deixo, na voz e na pena do ortónimo, o dito ensaio (a que subtraí algumas páginas como adiante justifico) que, no meu entendimento, bem merece ser conhecido por um círculo mais amplo de leitores. É uma Reflexão em torno do fazer poético "VIDA-MORTE", com o elemento aglutinador o "AMOR", nos poetas que   atravessaram o séc. XX Manoel de Barros, Hilda Hilst, Fernando Echevarría e Alvaro Giesta (em que me incluo enquanto autor do livro O Retorno ao Princípio, uma dialéctica Vida-Morte) com a participação especial de Antero de Quental (séc. XIX). E digo, "participação especial de Antero de Quental" porque o dito ensaio encerrou com uma peça, em diálogo, entre o autor deste texto e o encenador Fernando Lobo que então dirigia o referido Clube Literário. Diálogo que aqui se não inclui por decisão exclusivamente minha para não tornar tão pesada esta peça. Os poetas em apreço, não necessariamente por esta ordem, mas enquadrados no tempo do mote, observando-se a mestria no uso da palavra, subjectiva enquanto construção poética, mas material enquanto interesse pela busca de compreensão para o significado da existência do ser, enquanto tal, seja da sua finitude, enquanto ser sujeito à morte e fim de ciclo da natureza, seja da sua continuidade enquanto vida para além da vida, numa perspectiva poética enquanto inquietação pela existência, renovando o ciclo do humano, aproximando-o do divino, passando pelo corpo enquanto fragilidade, deterioração, envelhecimento, para chegar ao sublime, no campo poético, daqueles que encaram filosoficamente o fim que se torna princípio.]

No fazer poético de alguns poetas, a MORTE não é o fim de um ciclo. Ela é transmutação. É apenas o trânsito, a passagem breve para outra vida, passagem ainda que fatal, pela fatalidade que o fenómeno morte encerra, um ponto de passagem, obrigatório para todos os seres vivos. É apenas a passagem para outra VIDA, com princípio no próprio fim. Ela é, não deixando apenas de ser o fim, também o princípio que começa onde esse fim termina.

Começo por falar do pensar e fazer poético de Alvaro Giesta, (pseudónimo); e enquanto poeta, a liberdade da palavra, no uso poético que lhe dou, permite-me filosofar um pouco acerca da morte. A morte, que é a garantia da ordem no mundo dos homens, que é o que concede o diálogo, pois, no mundo humano adquire-se a vida através da morte. Só, assim, a vida tem sentido.
O filósofo Maurice Blanchot dizia que «a morte é a base de todo o alicerce humano diferentemente do que ocorre no mundo literário». No texto poético as palavras adquirem uma maior liberdade pela soma inesgotável de temas que se nos propõem à imaginação trabalhando a matéria desses temas com a arte poética que eles merecem. Daí que, considere, que não há morte em literatura; e, neste caso, refiro-me à poesia. A impossibilidade da morte diz respeito ao não-fim. Ou seja, a finalidade da morte que nos surge diariamente na linguagem normal das evidências, não existe na linguagem poética. Mesmo quando poetas como Fernando Echevarría nos dizem que a morte é o fim e que, para além da morte nada mais há senão o fim; o nada; o vácuo.
Mas é exactamente esse fim poético que vai dar origem a novos olhares, à tal «espuma» de Echevarría que lhe deu origem. Porque, é no nada e do nada que nasce a linguagem poética; é aí, no preciso lugar «onde a luz e a obscuridade coincidem e se transformam» (Ángel Crespo), que se dá o acto inaugural da palavra. À semelhança, e contrariando Echevarría que na sua linguagem mais filosófica que meta-poética diz que para além da morte nada mais há senão o nada, a morte é o retorno ao princípio a partir do nada onde se dá o acto inaugural da palavra - símbolo máximo do acto inaugural da VIDA.
A linguagem poética, neste caso na enfatização da morte pela palavra, não procura uma finalidade, uma explicação, não procura atingir algo, atingir um fim - isto, é para as religiões e seitas. Na linguagem poética a palavra não morre. A palavra, se morre, é para dar vida à palavra nova porque «a palavra é a vida dessa morte», como nos diz o filósofo Maurice Blanchot.

«eis / o invisível monumento / da lucidez: // onde a luz acabou / reacendeu-se /
a vida; // o timbre afina-se / ao abrir duma janela / que antes de estar / aberta /
se abriu // erguem-se do silêncio / as almas / em centrífuga abstracção... // onde /
o vento / exunda a escuridão das águas / e cresce / a exumação das coisas inúteis, /
há / a elevação das almas / ao infinito-além /»
(Alvaro Giesta in O Retorno ao Princípio, poema 3, pg 19)

Como se vê neste poema, há no autor Alvaro Giesta, como dialéctica existencial, um horizonte de expectativas enquanto epifania possível de um tempo novo. Continuo a dizer que não tem nada a ver com qualquer tipo de credo religioso; é apenas a sua expressão mais alta no fazer poético em que se debruça Alvaro Giesta neste tema Vida-Morte que lhe inspirou o livro poético referido. Aliás, esta experiência neste autor é como que uma vontade subjectiva de atenuar o sofrimento comum a todos os mortais, principalmente aos camponeses enterrados por uma vida nas serranias do nordeste transmontano, que lhe é a sua origem, para quem a morte é dor no luto com que vestem a alma e o corpo, muitas vezes para o resto da vida, mas também, esperança de que para lá do fim comece um novo princípio mais radioso.

«desprende-se / para destino enigmático, / do âmago do corpo / extenuado, /
a alma sedenta de glória / noutra esfera. // a barcaça da morte / atravessa /
o lago escuro da noite, / onde tudo acaba / e começa / novo dia,»
(Alvaro Giesta in O Retorno ao Princípio, poema 6. pg 22)

«a substância, / em maturação inclina-se / no seu propenso vagar /
para a glória da morte, // e dela / em glória renasce / em novo dia, /
sendo que do seu fim / acontece todo o princípio. // deslumbra-se, /
do corpo que se desintegra, / agora / a alma / que se difunde no abstracto /
devir.»
(Alvaro Giesta in O Retorno ao Princípio, poema 7. pg 23)

É como que uma praxis criadora inspirada na fé de todos os domingos nas capelas das aldeias onde enchem os bolsos aos padres com promessas que lhes vendem na expectativa de um mundo melhor e mais justo e um lugar cativo no céu, enquanto  rasgam os joelhos em penitência no culto aos seus mortos que, por detrás da mesma capela muitas vezes repousam. A felicidade, na descrição da morte para o poeta Alvaro Giesta (felicidade nos moldes em que ele a descreve), quando poetisa o momento em que seu pai descansa no esquife, ainda que sendo ela, fim, este fim não deve ser equiparado ao términus, no sentir e no querer poético do poeta, enquanto NADA e MORTE mas, sim, enquanto «fim no começo». Ela, a morte, para o poeta, é o princípio, é a busca do Além, é o retorno ao princípio. E ela será felicidade, ligada à esperança no pressentimento do Bem-Supremo.
A morte é o tal "monumento invisível" onde a luz se reacende, é o tal "abrir de uma janela / que antes de estar / aberta / se abriu " e donde "se erguem /as almas" e "se elevam / ao infinito-além".
É a tal praxis criadora inspirada na fé num deus que, embora podendo não ser o seu (e seguramente o não é), é o daqueles desvalidos que n’Ele acreditam; aqueles, que o poeta canta; aqueles sobre quem ele se debruça; aqueles por quem ele, poeta, se outra. É a imaginação do poeta na busca incansável do inalcançável, na busca de vencer o fracasso, de vencer a morte. Quantas vezes o poeta até faz lindos poemas sobre a feia morte… prefaciando Fernando Pessoa, «o poeta é um fingidor».

«Impávido e sereno. Dormia. / Um sono profundo e tranquilo. /
Imponente, entre finas e brancas rendas / no seu fato cinzento, quase imaculado, /
que só em épocas festivas vestia. //
Um rosto magro, ossudo, quase sem vincos / tranquilo, repousava. /
Como se o seu último desejo por cumprir / fosse aquele sonho eterno /
o que em vida mais desejava. //
Em seu redor nem sussurros se ouviam / com medo de o acordar. /
Vigiavam-lhe, os amigos, aquele sono tranquilo / feito de silêncio e respeito /
e dor. Todos sofriam. //
O rosto magro, bem barbeado / afagado pela seda do alvo lençol /
tinha a brancura da morte. / Tão diferente do que fora outrora /
tisnado pelo labor do campo ao sol. //
Dormia sem sobressaltos nem stress. / As suas mãos sobre o peito,
ambas cruzadas / uma sobre a outra, seguravam / com firmeza e fé,
mesmo na morte / o terço das suas preces.
Debruçada à cabeceira, por dois círios iluminada, / em oração surda a minha mãe. /
Parecia alheada do mundo e ausente. / Rogava ao deus das suas preces /
que se voltassem a abrir aqueles olhos / teimosamente fechados, para sempre. //
No rosto de meu pai, já sem sofrer / os seus olhos fixavam, porventura, /
sob as pálpebras fechadas um mundo novo / que se abria feito de ventura /
às portas do Além.»
(Alvaro Giesta in Erráticos Poemas)

VIDA e MORTE são interdependentes. Existem simultaneamente. Uma não existe sem a outra. Ou melhor, existencialmente, Vida e Morte fundem-se uma na outra. A morte ronda continuamente a vida, é um facto contínuo na própria vida, pois «morremos ao nascer; o fim já existe desde o começo». Já Sócrates, condenado pela cicuta à morte, quando a sua mulher correu aflita para a prisão gritando-lhe: «Sócrates, os juízes condenaram-te à morte!» ele, o filósofo, calmamente respondeu: «Eles também já estão condenados». Filosofando, preparou-se para a morte. Porque, como dizia Santo Agostinho, «é somente em face da morte que nasce a individualidade do homem». Afinal, Freud tinha razão quando dizia que «a morte é o final necessário e inevitável da vida». Vida que, se a quiser suportar, me tenho que preparar para a morte. Desde o instante em que nascemos, começamos a morrer; cada dia vivo é um dia a menos nas nossas vidas, na nossa existência. É a nossa condição existencial. Porém, sendo a morte um dos fenómenos inevitáveis, o poeta não deve deixar de reflectir na sua finitude como ser humano. Mais uma vez o entendimento do poeta Alvaro Giesta que tem da morte a ideia como causa necessária da vida:

«MORTE / doce irmã do sono / descanso fatal da dura vida. // liberto o espírito /
com o som e a cor da morte, //
desperto da ilusão / a ideia / neste puro entender / o enigma da morte, //
da morte / não fantasma, //
e olho-a, pela ideia, / de que a morte é libertação.»
(Alvaro Giesta in O Retorno ao Princípio, poema 1. pg 17)

descansa-se finalmente / dos atropelos / com que escreveram /
aqueles que antes de morrer / nos mataram; //
calha-nos isso / por sorte / na VIDA. //
(Alvaro Giesta in O Retorno ao Princípio, poema 2. pg 18)

A morte, em poesia, é um dos temas actuais muito pouco tratados mas que nos devia merecer pesquisa e preocupação. Principalmente porque, se ela nos amedronta, também é ela, porque existe, que nos dá a única e definitiva certeza da vida. E, se para uns é esperança de um novo princípio, mais radioso, ainda, como em Giesta podemos verificar, para outros poetas, como Fernando Echevarría, ela também é certeza do desgaste que a idade não perdoa. Em «sobre os Mortos», de sua OBRA INACABADA, reflecte no enigma da morte que no seu movimento deixa o «nada» como existência.

«O corpo dos defuntos é enigmático: / não tem além de si, nem dentro. /
Nada se lê no seu volume. O pacto / substante que sustenta o pensamento /
cedeu lugar a um vácuo (…)»
poema 4. (Fernando Echevarría, Obra Inacabada)

Eis o corpo poético de Fernando Echevarría onde se finda a vida. Para além desse fim, nada mais há que o fim; o nada; o vácuo. Ainda que a morte, nessa certeza de vácuo, não deixe de ser o tal enigma que faz o poeta entrar em contradição quando nos diz que, ainda que a idade nos vá tocando, em direcção ao fim, por detrás desse fim há «novos» olhos (as tais / raízes) que ultrapassam o tempo da velhice e que os ossos, onde se suspende o alento, voltam à espuma que lhes deu origem. Vejamos o poeta Fernando Echevarría nessa dicotomia Morte (vácuo) / Origem (princípio)

«À medida que a idade nos vai tocando, os mortos
tornam a sua murmuração sensível
por detrás das sebes e dos rebentos novos
suspendem o alento. Mas os vimes
quase estremecem. Porque espreitam olhos
que ultrapassam o tempo da velhice.
E nós andamos de dentro ouvindo. Os poros
quase que levam raízes
àquele sítio em que os ossos
voltam à espuma que lhes deu origem.»
poema 5. (Fernando Echevarría, Obra Inacabada)

Eis Fernando Echavarría, na sua impressionante arte poética «moldada pelo íntimo conhecimento da poesia latina», como nos diz Maria João Reynaud no prefácio que faz à OBRA INACABADA do poeta, a erguer a língua de Camões em que a linguagem é um instrumento mediador entre o mundo natural e o mundo espiritual, em que a figura do poeta se apaga face à condição de fazer poesia enquanto via «iluminativa e unitiva». Pela sua poesia ascende-se ao conhecimento e o destinatário do poema é aquele que se identifica com um horizonte infinitamente aberto de um tempo onde a verdade poética se plasma. Na «Introdução à Filosofia», parte integrante da sua poética OBRA INACABADA, ainda acerca da morte, no seu 18.º soneto a que ele chama 18.ª lição ao escrever:

«Estamos na morte. Como quem frequenta / uma escola ambulante em que o rigor /
resulta, não do mestre, mas da atenta / meditação de passear leitor.»
poema 6. (Fernando Echevarría, Obra Inacabada)

E estando na morte, estamos «Perto da vida e longe da esperança» onde «aguardamos (…) / insensíveis matizes de mudança / que em ver culminam, passando pela ciência». Aqui, manifestamente a rejeitar, de certa forma, a ideia da vida após a morte, na 19.ª lição de «Introdução à Filosofia» porque «últimos pesam os signos por que avança / a ilusão da viagem que se pensa / mais próxima da luz» (F. Echevarría).
Cada poema em Fernando Echavarría, como nos diz Octávio Paz, é «único, irredutível e irrepetível» ou, como nos diz a prefaciadora de OBRA INACABADA, «é o espelho de uma obra guiada por uma intuição metafísica». E é nesta intuição metafísica, nesta possibilidade de aceder ao invisível que se divisa a relação entre a Vida e a Morte em Fernando Echevarría.

«Cada poema actualiza a morte. / De onde madruga o poeta /
para uma outra que lhe vem de longe. / E, novamente, o leva. /
(…) Enfim, a entrega / a um ritmo de vigília. /
Que abre a morte / e a madrugada dela.»
poema 8. (Fernando Echevarría, Obra Inacabada)

A morte, sem dúvida que é um tema objecto de pesquisas e preocupações por parte dos poetas que a cantam. Negar a morte, é difícil; admiti-la, é de coragem e uma virtude em quem a admite. Fugir dela, é irreal, porque, ainda que ela assuste, ela é um fim necessário à vida. Quando me decidi a escrever sobre o tema, pensei que isto até seria uma brincadeira séria. Mas, ao mesmo tempo, até me assustei ainda que eu goste de esgrimir com a morte. Já a senti, por vezes, sob dois aspectos: quando em guerra, assustadora; quando em situações de doença de difícil entendimento clínico ou noutras situações de desespero e desilusão, convidativa. Apelativa, até! Também tive ocasiões em que vi a vida morrer-me nos braços, ensanguentada, horripilante e aí senti a morte repulsiva e indesejável. Misteriosa, quando não se sabe porquê! Porque é que ela nos bate à porta, logo a nós e nessas ocasiões. Foram estes diversos factores que me fizeram autopsiá-la quanto à poesia. E procurei poetas que lidassem com a morte com o mesmo à vontade com que, de permeio, lidam com o amor - o elo aglutinador que estabelece pontos de confluência nesta dialéctica dizível VIDA - MORTE.
A morte, para os crentes num mundo melhor, é sempre «passagem para uma vida definitiva» - assim a decifrou S. Paulo; já Eurípedes, o trágico poeta grego, reflectia que «morrer deve ser como não haver nascido / e a morte talvez seja melhor até que a vida / de dor e mágoas, (…)»; ao contrário, Fernando Pessoa considerou-a um «enigma».
Seja como for, a realidade é que a morte é um facto - é o cessar completo e definitivo de vida de um ser vivo - que muitas vezes se deseja sem medo, bem diferente desse que se sente quando o morto-vivo permanece ligado à vida através daquelas máquinas complicadas e tubos a emoldurar a cama em que se deita, sem saber que ali está naquele estado vegetativo. É algo desafiador interrogar a morte, desafiar a morte, desafiar esse limite do homem sobre o controlo da natureza… talvez esse sentimento de inconformidade tenha a ver, não com o medo da morte propriamente dita, mas com o medo do sofrimento físico e emocional decorrente dela; medo da dor, da incapacidade física, da incompreensão dos outros homens válidos, da falta de liberdade de poder ser, por si só, medo da solidão.
Presente, no desabafo-desespero final do poeta Giesta no seu poema "Testamento à Morte" em "Erráticos Poemas" e diante da irreversibilidade no curso das coisas que nos atingem em níveis muito profundos e diferentes; a descrença no divino e a vontade de não sofrer quando a doença incurável é a marca irremediável neste percurso da finitude humana. Não é o negar da morte, neste momento de cultura contemporânea; é, outrossim, ousarmos falar dela com coragem, imaginá-la, compreendê-la e aceitá-la. Mas também é um não-crer que a morte unifica e reforça os laços de amizade. Ideias da morte e dos seus rituais como aspecto da sociedade que podem unir pessoas ou separar grupos, não está na perspectiva do poeta. Mas também não é vontade do poeta que enfatize a morte com sentimentos de dor, que muitas vezes é uma dor fingida, nem com rituais de exploração do corpo, em fim de vida, que perspectivem uma busca do conhecimento que passa pela sensação da impotência científica.

No século XX poucos têm sido ou foram os poetas que, numa permanente inquietação na busca de sentido da vida e confrontados com a questão do vazio existencial inerentes à condição humana, se preocuparam, em sua poesia, com a questão VIDA-MORTE. Contudo, dois poetas se destacaram, quer pela importância da sua poesia temática Vida e Morte, dando especial ênfase ao uso que fizeram da palavra na construção da sua poética, quer pela subjectividade impressa nas suas obras: Manoel de Barros e Hilda Hilst. E cabe aqui homenageá-los. No tecer poético de ambos os poetas, a morte é transmutação, já que, no dizer poético de Manoel de Barros «ninguém é pai de um poema sem morrer». Tanto em Manoel de Barros como em Hilda Hilst, há um constante questionar e questionar-se acerca da produção literária dos poetas, nomeadamente, deles, enquanto poetas.
O sujeito poético de Manoel de Barros é a natureza dos seus reinos animal e vegetal. Não se lhe percebe a vida, nem ele a percebe sem relacioná-la com a morte. Nem para ele, a morte é destituída de vida. Uma e outra fazem parte de um processo de renovação contínua. A natureza é exaltada, é glorificada, é evidenciada como parte do homem e este como parte daquela. Um e outro se interpenetram, completando-se. Tal qual a vida e a morte, também o homem e a natureza vivem nessa simbiose de ideias e de palavras em Manoel de Barros. Tudo faz parte de tudo. Tudo se funde - homem, pedra, bicho, flor, árvore, pássaro… tal as coisas fazem parte de tudo, se fundem, se contagiam entre si, «musgo na pedra», «líquen na água», assim a linguagem meta-poética também passa por uma metamorfose idêntica «libélulas pensam dálias». O ciclo de vida, em Manoel de Barros, é apresentado poeticamente como transformação de um estado para outro, como a transformação do ser de um reino entregando-se a outro para fazer parte dele.
Aventuro-me até, a dizer, das leituras que fiz dele acerca da dialéctica Vida-Morte, que o seu poema é um não-poema. Levanta questões da e na morte da e na natureza que exalta que estão muito perto do mais profundo saber poético na formulação que faz de coisas que só podem existir, na sua imagética poética, se forem contraditórias. Uma vénia, aqui, ao poeta espanhol Ángel Crespo, um dos maiores especialistas da poesia portuguesa, quiçá o melhor conhecedor espanhol de Fernando Pessoa, quando nos diz, acerca do não-poema: «se sabes perfeitamente o que estás dizendo, não continues o poema: rasga-o». E agora, no dizer do crítico Melo e Castro: «Este movimento de suspensão sobre o abismo do saber e do não-saber é talvez o único critério de avaliação do poético, onde tudo se suspende sobre o nada e onde o nada se veste de miragens de todas as coisas vivas e inanimadas» - isto, para explicar, do entendimento que eu tenho da leitura que fiz da poética de Manoel de Barros sobre o tema Vida-Morte. A sua poesia, sobre a Vida-Morte, é o lugar da natureza onde a visão se afina e sensibiliza, onde mede a realidade da Vida com o comprometimento que tem com a Morte, e onde executa, com rigor meta-poético, a sua dialéctica e realidade inteira.

«O chão pare a árvore / pare o passarinho / para a rã – o chão /
pare com a rã / e de passarinhos / o chão pare / do mar //

O chão viça do homem / no olho / do pássaro, viça / nas pernas /
do lagarto e na pedra»
(Manoel de Barros)

«O mundo meu é pequeno Senhor  / Tem um rio e um pouco de árvores /
[…] / Formigas recortam roseiras da avó /
nos fundos do quintal há um menino e suas latas /
maravilhosas / seu olho exagera o azul /
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas / com aves /
[…] / De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os / ocasos»
(Manoel de Barros)

O fazer poético deste poeta remete-nos a um tempo em que «não havia limites» para o uso da palavra. É o tal não-poema considerado, na sua meta-poética, poema maior. Não havia comportamentos de estar, de escrever, de dizer as coisas em poesia. Em Barros, sempre contrário à «nova ordem», «só as palavras não foram castigadas com / a ordem natural das coisas / As palavras continuam com seus deslimites», diz-nos ele.
Contrária à «nova ordem» é também Hilda Hilst, nos seus escritos nos moldes tradicionais para tratar ideias opostas ao senso comum. Ela trata o amor, neste percurso Vida - Morte no sentido de fazer dele o elemento aglutinador das duas forças opostas, mas que se completam dando-se continuidade uma à outra. Vejamos o poema seguinte na sua construção trabalhada de versos decassílabos camonianos, onde fala no amor numa perspectiva contrária ao habitual, subvertendo a intenção com que esta forma poética é normalmente executada. Nestes versos de decassílabos heroicos, de características clássicas camonianas, usando uma estilística que remete o poema para um lugar elevado, Hilda Hilst quebra-os propositadamente ao meio para romper com a literatura tradicional. É o seu carácter transgressor e libertador da escrita. Vejamos estes dois poemas em que a poeta evidencia o Amor como elemento aglutinador neste caminho a percorrer entre a Vida  e a Morte.

«Que este amor não me cegue nem me siga. / E de mim mesma nunca se aperceba. /
Que me exclua do estar sendo perseguida / E do tormento / De só por ele me saber
estar sendo. / Que o olhar não se perca nas tulipas / Pois formas tão perfeitas
de beleza / Vêm do fulgor das trevas. / E o meu Senhor habita o rutilante escuro /
De um suposto de heras em alto muro. //
Que este amor só me faça descontente / E farta de fadigas. E de fragilidades tantas /
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra / Como só soem ser aranhas e formigas. /
Que este amor só me veja de partida.»
(Hilda Hilst in Da Morte. Odes Mínimas)

O imaginário poético em Hilda Hilst contribuiu para dessacralizar aquela que causa tanto pavor - a Morte - para que ela vá perdendo o horror que inspira. A propósito, quando em 2001 a Editora Globo, responsável desde aí por toda a obra de Hilda Hilst, publicou o volume «DA MORTE. ODES MÍNIMAS», veio acompanhado por seis aguarelas da própria autora, quadros de cores vivas e alegres ao mesmo tempo que os seus versos conversam com a negra morte. De tal propósito é dado a entender de Hilda Hilst que traz a morte para a vida cheia de sol e cor e que a conversa, com ela, mesmo sendo no monólogo da poetisa, se torna possível sem causar qualquer espanto ou medo. O seu imaginário poético, e fértil, traz ao encontro, com o leitor, duas personagens femininas que se encontram no maior dos à-vontades, próprio dessas duas mulheres que se cruzam: Hilda Hilst e a (sua) Morte, e em conversa desafiadora e erótica com elemento aglutinador o Amor.

«Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca / austera. Toma-me AGORA,
ANTES / antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes / da morte, amor, da minha
morte, toma-me / crava a tua mão, respira meu sopro, deglute / em cadência minha escura
agonia. //
Tempo do corpo este tempo, da fome / do de dentro. Corpo se conhecendo, lento, /
um sol de diamante alimentando o ventre, / o leite da tua carne, a minha /
fugidia. E sobre nós este tempo futuro urdindo / urdindo a grande teia. Sobre nós
a vida / a vida se derramando. Cíclica. Escorrendo. //
Te descobres vivo sob um jogo novo. / Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor, /
antes do muro, antes da terra, devo gritar a minha palavra, uma encantada /
ilharga na cálida textura de um rochedo. Devo gritar / digo para mim mesma.
Mas ao teu lado me estendo / imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.»
               (Hilda Hilst in Da Morte. Odes Mínimas)

Numa sociedade de alienação, dominada pela obsessão do prazer e do dinheiro, uma sociedade do vazio, do não-sujeito, da violência, onde a morte está sempre por trás, Hilda Hilst busca compreendê-la mas primeiro quer entender a vida. Na sua obra escreve a velhice, o abandono, o significado da existência do ser e o seu lado material. Tal qual Manoel de Barros, também ela lida com o lodo, com o podre das coisas - em Hilda mais com a podridão do ser humano sempre em constante deterioração.

«Será que apreendo a morte / perdendo-me a cada dia /
No patamar sem fim do sentimento? / Ou quem sabe apreendo a vida /
Escurecendo anárquica na tarde / Ou se pudesse / Tomar para o meu peito a vastidão /
O caminho dos ventos / O descomedimento da cantiga //
Será que apreendo a sorte / Entrelaçando a cinza do morrer ao sémen da tua vida?»
(Hilda Hilst)

No texto muito bem elaborado de Hilda Hilst, há palavras que se aproximam semanticamente «morte» e «sorte», assemelhando-se na grafia e no som, equivalendo-se, até, na função sintática, entrecruzando-se no texto e até na sua significação, porque nunca a "morte" trouxe "sorte", partindo depois para um entrelaçar entre «cinza» e «sémen» que, metaforicamente, significam "morte" e "vida". E, desafiadora, sem temor da morte, no seu tom feminino como se de mulher para mulher falasse, num tom desafiador interroga-a com a coragem de dizer, sem medo, aquilo que o seu ego poético pensa. Vejamos, nos próximos poemas, como conversa Hilda Hilst com a morte:

«Onde nasceste, morte? / Que cores, ocaso e monte? /
E os pulsos que te arrancaram / do mais escuro. De carne? /
Te alimentavas / de amêndoas negras? Havia águas? / Vagidos, choros, /
empelicada como nasce a vida? / Se querias, tocavas? /
(...) / E o instante se fazia / insipida e nada? //
E velhíssima agora / conhecendo todos os tatos / agonia, terror e pasmo /
saciada / por que não partes?
(Poema VII- Hilda Hilst)

«Perderás de mim todas as horas / porque só me tomarás /
a uma determinada hora. //
E talvez venhas / num instante de vazio / e insipidez. //
Imagina-te o que perderás / eu que vivi no vermelho /
porque poeta, e caminhei / a chama dos caminhos //
atravessei o sol / toquei o muro de dentro / /os amigos
a boca nos sentimentos / e fui tomada, ferida
de mal assombros, de gozo //
Morte, imagina-te.»
(Poema VIII- Hilda Hilst)

«Se eu soubesse / teu verdadeiro nome / te tomaria / húmida, ténue //
e então descansarias. // Se sussurrares teu nome secreto / nos meus caminhos /
entre a vida e o sono, // te prometo, morte, / a vida de um poeta. A minha: /
Palavras vivas, fogo, fonte. // Se me tocares / amantíssima, branda / como fui tocada
pelos homens // ao invés de Morte / te chamo Poesia / Fogo, Fonte, Palavra viva /
Sorte.»
(Poema XIX- Hilda Hilst)

Que dizer mais de uma poetisa, (de uma poeta como ela exige que lhe  chamem) como Hilda Hilst, que tratou a Morte, que amou a Morte, que se promete entregar à Morte com o mesmo à vontade, com o mesmo sem temor, com o mesmo glamour, com o mesmo amor, com a mesma sensualidade erótica com que desenhou a sua poesia pornográfica? Apenas isto: Que vale a pena conhecer, com maior profundidade, esta criadora de textos magníficos (não apenas poéticos mas, também, e essencialmente, dramaturgos),  onde a temporalidade, o real e o imaginário se fundem e os personagens mergulham num intenso questionar de significados buscando a compreensão da condição humana.
Difícil é dissociar estes dois poetas brasileiros do seculo XX sob pena de a sua análise sair prejudicada. Daí que, sendo a sua poética com motivos tão iguais, se discorreu, ao mesmo tempo, sobre um e outro. Tão diferentes mas tão iguais, nestes dois poetas brasileiros do seculo XX, a morte é transmutação e nada; novamente o nada; o vazio; o vácuo; o não-ser. A morte, como sendo o lugar onde a luz e a obscuridade coincidem, se fundem e se transformam. Segundo o seu fazer poético, em poesia deve ser convencional.

«Estou atravessando um período de árvore / O chão tem guia de meu olho por
motivo que meu / olho tem escórias de árvore / O chão tem guia de meu olho
pelo mesmo motivo / que ele tem guia por pregos por latas por folhas /
[…..]
No meu morrer tem uma dor de árvore»
(Manoel de Barros)

«Não me procures ali / Onde os vivos visitam / Os chamados mortos. /
Procura-me / Dentro das grandes águas / Nas praças / Num fogo coração /
Entre cavalos, cães / Nos arrozais, no arroio / Ou junto aos pássaros /
Ou espelhada / Num outro alguém, / Subindo dum duro caminho /
Pedra, semente, sal / Passos da vida. Procura-me ali / Viva.»
(Hilda Hilst)

Em Manoel de Barros difícil é sempre saber quem é o sujeito da enunciação de um verso, porque as palavras migram de uma classe para outra – mas tudo, nesta subjectividade poética, funciona bem porque nada em poesia precisa de ser de um modo convencional, nada precisa de ter utilidade. O importante é fluir, tal como um rio quando “está começando um peixe”.
É neste sentido que, em Manoel de Barros, a velhice pode ser percebida como uma das qualidades do que é descartável, do que já não serve para mais nada, do que deixou de ser importante para o mundo. O ser-idoso, em nossa sociedade, é ser inútil, é não prestar, é ser visto como algo "desimportante", como Manoel de Barros dirá, e a atitude literária do poeta é resgatar o que já não é valorizado. É assim que o escritor recupera a dignidade das coisas, dos objectos, via poesia, e nos remete para o ser humano cuja existência está vinculada à finitude com uma trajectória em direcção à morte. Embora, em Manoel de Barros, o fim seja recomeço, pois o ciclo da vida não se encerra com a morte, pelo contrário, renova-se. Em consequência, o ser não acaba – transforma-se, como tudo na natureza.
Em Manoel de Barros há uma preocupação constante com o esvaziar, com o nada, com o vazio. Neste contexto, a morte é vida, morrer não é o fim, porque é renascimento. Já Miguel Torga via no ressurgir da natureza, a cada estação, o renascer da vida após a morte. Viver é ser árvore, é misturar-se com a natureza porque, quando vida e morte se misturam dão a medida exacta da sua dimensão e continuidade.
A literatura de Hilda Hilst é fortemente marcada pela busca do sentido da vida. Põe o dedo na ferida, apontando o vazio, denunciando a fragilidade e a condição vulnerável do homem, denunciando o lado perecível do ser humano fortemente submetido às corrupções. Expõe desejos da carne e as contradições do espírito. Esforça-se por compreender Deus e a existência humana sedenta de paixões. Assim se justifica que o sagrado e o obsceno caminhem de mãos dadas no seu discurso poético, chegando ao sublime através do erótico.
Usa o palavrão ainda que a sua cultura seja refinada e a sua linguagem erudita. Evoca autores com nível intelectual lidos por muito poucos, evocando, deles, ideias. Decompõe o humano quando escalpeliza o amor, mesmo dizendo da morte. Não tem pejo de misturar o mais puro do amor, com as fezes, as vísceras, a morte e o prazer mundano da carne num processo de criação poética.
Quer encontrar o humano na VIDA, no AMOR e na MORTE como temas ligados à sua eterna poesia, num questionar constante na tentativa de descoberta do "Quem sou?", "Sou esta ou outra?" em conflito constante expresso pela voz de um sujeito figurado na busca do "eu". Na poética hilstiana há um penetrar fundo pela experiência existencial religiosa na busca do "eu" e do "Sagrado". A sua criação poética, na vertente "VIDA – MORTE" vivencia o Absoluto e o Amor que se perderam nestes tempos de mudança. É nesta constante interrogação à Morte e ao Sagrado que se persegue na busca incansável de si própria ao encontro com a morte.

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