PAULO FERREIRA |
Em Portugal os inquéritos criminais são liderados e conduzidos pelo Ministério Público. Assim e na sequência de uma denúncia, ou de forma proactiva, o MP tem consagrados na lei um conjunto de instrumentos que lhe permitem recolher os indícios que considera necessários à dedução de uma acusação. Para além da inquirição de testemunhas, interrogatório aos arguidos e análise de documentação variada, o MP tem à sua disposição a possibilidade de solicitar que determinado cidadão fique com os seus telefones sob escuta, a realização de buscas domiciliárias, o levantamento do sigilo bancário, a vigilância permanente no sentido de poder ser obtida a prática de um crime em flagrante delito, etc..
Com estes meios à disposição da investigação criminal e sem prejuízo das naturais alterações que a evolução da sociedade e dos modus operandi possam, a todo o tempo, exigir, há limites que jamais deverão ser transpostos. A Justiça é fundamental para qualquer Estado de Direito, todos com certeza estaremos de acordo. Sem Justiça não há democracia, também é uma máxima que nenhum democrata ousará contestar. Mas na forma e método como se obtêm provas, há limites que não podem ser ultrapassados. A Justiça tem regras e com certeza que se se instituísse em Portugal, por exemplo, a prática da tortura como método legítimo de obtenção de provas, seriam muitos os cidadãos que confessariam a autoria de factos delituosos, designadamente de crimes em que não existe prova testemunhal ou documental. Apesar de, com esta alegada confissão, se conseguir provar e consequentemente condenar uma pessoa pela prática de um crime, naturalmente que não poderíamos chamar a isto Justiça.
Sem querer, como é óbvio, comparar o que é incomparável, a verdade é que a tentativa de colocar na agenda política o debate sobre a figura da delação premiada, deixa-me, como cidadão, mas também como jurista, profundamente inquieto. De forma simplista, a delação premiada mais não é do que um acordo entre um arguido e as autoridades judiciais nos termos do qual aquele tem um prémio ou benefício (atenuação da medida de coação, diminuição ou isenção da pena, etc.) por delatar outros.
Esta discussão surgiu em Portugal muito recentemente e tem claramente na sua génese um conjunto de inquéritos judiciais a figuras mediáticas. Os seus maiores defensores, alguns magistrados do MP e juízes, pretendem a instituição desta figura no ordenamento jurídico português, alegando que só assim se conseguirá acusar e consequentemente condenar alguns cidadãos no âmbito de processos de criminalidade económica e financeira. No fundo no fundo, aquilo que alguns (estou certo que poucos) magistrados e juízes pretendem é simplificar ao máximo a investigação criminal, conseguindo, com a promessa de uma redução /dispensa de pena a arguidos envolvidos na prática de crimes económicos, prova suficiente para condenar terceiros. Para além do risco de falsas delações, da discutível justiça ao permitir-se que um arguido obtenha uma redução de por exemplo 2/3 da pena, ou até mesmo a dispensa total da pena, apenas e só pelo facto de incriminar terceiros, a que acresce uma inevitável alteração das atribuições do Ministério Público, torna esta figura jurídica perigosa e sinistra q.b..
A verdade é que, dependendo naturalmente da configuração jurídica da coisa, delator e bufo poderão ser sinónimos. E a história mundial, no que à bufaria diz respeito, é infelizmente muito pouco recomendável. Também em Portugal, onde a atividade de dizer mal do vizinho sempre foi muito apreciada, temos como expoente máximo da bufaria a sobejamente conhecida PIDE. Se para o regime de então os resultados foram francamente positivos, chamar a isto iustitiae é no nosso século uma heresia.
Ontem, como hoje, a bufaria assenta sempre na maledicência, na calúnia, na invenção torpe e na violação da intimidade das pessoas. Ontem, como hoje, um bufo é um bufo. Ontem, como hoje, nem todos os meios justificam os fins.
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