terça-feira, 12 de julho de 2016

OS TÍTULOS QUE NOS FALTAM

REGINA SARDOEIRA
Tenho inteira noção da dificuldade do assunto que hoje escolhi para tema. Essa dificuldade não advém do facto de eu não ter ideias bem assentes acerca do problema que quero tratar, antes resulta do assunto em si. 

É claro que poderia ignorar e não me deter sobre este que decidi tornar o mote da minha crónica; mas estaria a reprimir tudo o que me apetece escrever e, verdadeiramente, não vejo razões para tanto
Há pouco ouvi um grupo muito específico de portugueses a entoar o hino nacional. Nele, as palavras "heróis", "nobre", "valente", "imortal" ressoaram, vindas de outras épocas, e centrando-se, hoje, naqueles que, ontem, "levantaram de novo o esplendor de Portugal". Não no mar, como diz a estrofe, mas em terra, sobre um relvado, em disputa quase sangrenta com outros tantos homens, de outra nacionalidade. 

Tento associar-me, em júbilo, à onda que percorreu e ainda percorre o corpo e a alma dos portugueses, assim ressuscitando a voz da pátria das "brumas da memória", onde os "egrégios avós" foram conjurados para nos levar à vitória, tento sentir e compreender a relação entre este hino guerreiro e um jogo de futebol, que, na justa medida de um único golo, levou a selecção portuguesa à vitória. Mas só me fica uma estranha perplexidade. 

Também ouvi alguém dizer que, nesta gigantesca onde de comemoração aos heróis do relvado, os portugueses se uniram, independentemente de credos políticos, religiosos e outros, para celebrarem a glória de toda uma nação. 

Ora, tenho aqui dois motes importantes para reflectir. 

Embora não seja entusiasta do futebol e não goste do espectáculo que é o jogo em si, fui capaz de me regozijar com a vitória e mesmo de aceder a um surto de patriotismo futebolístico nos cinco minutos finais do jogo de ontem. Mas fiquei-me por aí. 

Portugal é um pequeno país que, ao longo da história, se tem erguido para além da exiguidade do seu território e partido à conquista de mares e terras longínquos com os quais se acrescentou. E é essa espécie de bravura que as palavras guerreiras do hino, o apelo às armas e à luta quer glorificar e enaltecer, desafiando o pequeno país a tornar-se grande. 

O futebol conseguiu, numa luta que já não sei muito bem se é, verdadeiramente, um jogo, desafiar uma série de países, em espaços e tempos concretos, ao longo das últimas semanas, e terminar, elevando o país ao topo. E, rendidos, os compatriotas desse punhado de homens-jogadores, experimentam a euforia da vitória e sentem-se engrandecidos. 

O que eu retiro deste fenómeno de vitória, de celebração e de júbilo é bastante mais complexo e profundo do que o erguer de uma taça no auge de uma festividade empolgada, bastante mais significativo que o motivo concreto pelo qual acontece o festejo. 

Todos sabemos que o futebol é um desporto colectivo. Ora, sendo colectivo, depende, por um lado, da coesão do grupo e, por outro, da consciência apurada e atenta de que cada um está ali, ocupando um certo lugar, com uma certa função. Portanto, o colectivo torna-se eficaz quando cada indivíduo sabe o que lhe compete fazer e o faz efectivamente, quando cada elemento, presente no jogo, está absolutamente consciente da importância da interacção e da continuidade com o outro e cobre-o, apoia-o, dá sequência à sua jogada. Sem esta cumplicidade da equipa não haveria jogo e muito menos qualquer vitória. Logo, a lição a extrair daqui e que poderia trazer benefícios a todos os sectores da vida nacional é o conhecimento e o respeito das regras da competição, o diálogo entre pares, visando o mesmo fim, a postura atenta e firme da defesa que pugna para não se deixar invadir e derrotar. 

Se todos conhecem tão bem este jogo, que eu apenas vislumbro à distância, por que razão não são capazes de seguir o exemplo destes a que hoje chamam heróis e fazer do pequeno país, deste modo vencedor na Europa, um real vencedor em todas as frentes, e também na Europa? 

É interessante, sem dúvida, ver o Chefe do Estado e do Governo, os líderes dos partidos e da Assembleia da República a juntarem-se aos jogadores em apoteose, numa fotografia memorável de união nacional. Mas porque hão-de fazê -lo apenas neste contexto, para depois se guerrearem e desentenderem entre si e, pior do que tudo, para não assentirem em compreender que, do mesmo modo que uma equipa de futebol fez frente aos países da Europa, vencendo-os, também a equipa do governo, as equipas dos que trabalham e dirigem e fazem comércio e indústria e ensinam e salvam vidas, enfim todos os sectores que, individual e colectivamente, constituem o cerne do país, poderiam igualmente atingir tal objectivo? 

Utópico? Não creio. É necessário apenas que cada um conheça, de facto, o seu papel e o cumpra; que cada um entenda que faz parte de um todo e que deve contribuir para o êxito do colectivo; que todos e cada um saibam as regras pelas quais se rege a sua actividade e não hesitem em respeitá -las. 

Decerto é necessário um treinador, vários treinadores que, detentores de experiência e sabedoria, possam encaminhar e dirigir, pelo melhor caminho, as equipas multidisciplinares de que é constituída a sociedade dos homens. Dos portugueses. Mas esses treinadores existem, decerto só falta que sejam chamados a dar o seu contributo, decerto andam escondidos, foram afastados ou ainda não lhes foi dada a hipótese de revelarem o que valem. 

Não consigo compreender de que estamos à espera, nós, os portugueses, para não começarmos já, hoje mesmo, tão empolgados que estamos com a conquista de um título europeu de futebol, para nos atirarmos, com esse sopro de energia para a luta pelos títulos todos que ainda nos faltam.

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