RUI SANTOS |
Embora Marshall Mcluhan tenha referido que vivemos numa «aldeia global», o conhecimento que temos sobre aquilo que nos é fisicamente, afectivamente e geograficamente longínquo continua a ser bastante diminuto. Esse é o caso das Filipinas, arquipélago com mais de 100 milhões de habitantes, o sétimo mais populoso da Ásia e o décimo segundo mais populoso do mundo. Foi neste país, tão importante para a geopolítica asiática, que os Estados Unidos da América estabeleceram um regime democrático após terem expulso os colonizadores espanhóis e, posteriormente, esmagado os rebeldes locais. Os americanos fomentaram o surgimento de grandes famílias latifundiárias e/ou burguesas – um verdadeiro viveiro de oligarcas – muitas vezes de origem chinesa, mas americanizadas culturalmente e cujo relacionamento com os autóctones foi sempre conflituoso. Nas instituições de governo local e nacional era normal o poder passar de um clã para outro. De vez em quando um líder prometia reformar o sistema, mas este sobreviveu sempre, mesmo depois de levantamentos sociais tão importantes como aquele que, em 1986, derrubou Ferdinand Marcos.
No passado dia 9 de Maio os filipinos foram chamados a escolher o seu presidente. De fora da eleição estava o anterior presidente Benigno Aquino, impedido constitucionalmente de se recandidatar uma vez que a Constituição filipina prevê um único mandato com a duração de seis anos. Embora com alguns elogios internacionais, em virtude da sua luta contra a corrupção e com um crescimento anual médio de 6%, Aquino é acusado pelos seus críticos de ter feito pouco para mudar um modelo económico que favorece extraordinariamente um pequeno número de famílias que controlam quase todas as principais indústrias das Filipinas, o que provocou uma das maiores divisões entre ricos e pobres no continente asiático. Aliás, a pobreza generalizada é um problema sem resolução ao longo dos tempos.
Poder-se-ia pensar que a oligarquia filipina no poder produziria um candidato na órbita do clã Aquino mas, devido a desentendimentos entre várias facções, tal não veio a acontecer. Aquino,cuja mãe liderou o movimento pela democracia que depôs Ferdinand Marcos há três décadas, advertiu repetidamente que o país estava em risco de sucumbir a outra ditadura e o resultado final parece ir ao encontro dos seus receios com a vitória de Rodrigo Duterte que venceu com 39% dos votos, tendo Manuel Roxas II ficado em segundo lugar com 23,4% dos votos. Mas, afinal, quem é o novo presidente filipino que assumiu funções no dia 30 de Junho?
Rodrigo Duterte é um político populista, polémico, com uma visão redutora dos direitos humanos e da liberdade. Nas mais de duas décadas como autarca de Davao, Duterte – apelidado por muitos como «The Punisher» ou «Duterte Harry», numa alusão ao filme «Dirty Harry» – transformou uma cidade que vivia num estado próximo da guerra, numa das mais seguras do mundo. Mas não se pense que tal tenha acontecido em virtude de programas sociais de emprego, educação, saúde, etc. Activistas de direitos humanos alegam que Duterte contratou mercenários para executar os criminosos mais violentos.
De acordo com um estudo do Banco Mundial, em 2013, a taxa de homicídios nas Filipinas foi a maior da Ásia e a 11.ª mais elevada em todo o mundo. A facilidade com que se pode aceder a uma arma de fogo – há mais de meio milhão de armas não licenciadas em todo o país – e o comércio e consumo de metanfetaminas contribuem decisivamente para estes valores. A criminalidade reflecte-se nas receitas provenientes do turismo, uma vez que os governos filipinos têm alertado ao longo dos anos para a «ameaça significativa de crime violento» e para o risco muito elevado de «ameaça de sequestro» nas regiões do sul do país.
A vitória eleitoral de Duterte (as eleições presidenciais filipinas disputam-se a uma só volta) foi alicerçada na proposta da criminalidade acabar em seis meses através ao assassínio de todos os suspeitos de crimes e oferecendo recompensas a quem matar traficantes de droga, violadores e homicidas. Estas execuções poderão ser feitas por forças militares, policiais ou civis. Para milhões de filipinos, Duterte significa o salvador, aquele que vai erradicar o crime e a corrupção. No entanto, não deixa de ser particularmente interessante que um dos candidatos a vice-presidente filipino – realiza-se votações distintas para a escolha do presidente, vice-presidente, senadores e deputados – que expressou o apoio a Duterte tenha sido Ferdinand Marcos Jr., filho do ex-ditador filipino Ferdinand Marcos deposto em virtude de escândalos de corrupção, entre outros crimes. Refira-se que o partido de Duterte, PDP-Laban, não apresentou nenhum candidato a vice-presidente, senadores ou deputados. Apesar da colagem de Marcos Jr. a Duterte, quem levou de vencida a eleição para vice-presidente foi Maria Leonor Robredo, politicamente mais distante de Duterte.
O novo presidente filipino produziu um vasto rol de infelizes declarações onde se inclueminsultos ao Papa Francisco – as Filipinas são um país onde 80% da população é católica, 9% cristã e 11% muçulmana –, o lamento de não ter participado em 1989 numa violação colectiva de uma missionária australiana e de desejar que os jornalistas corruptos, ou envolvidos em outras atividades corruptas, possam ser condenados à morte. Acusado de estar ligado a esquadrões da morte, Duterte está associado à suspeita de ordenar o assassínio de Pala, um jornalista e político que foi assassinado em Davao em 2003 e cujo assassinato nunca foi resolvido. Organizações de direitos humanos dizem que ele não foi acusado porque ninguém se atreveu a testemunhar contra Duterte em tribunal.
Nas prioridades do novo chefe de estado filipino está também o dossier respeitante aos rebeldes maoístas filipinos. Durante a terceira semana deste mês vão ter lugar em Oslo, na Noruega, conversações visando o estabelecimento de um cessar-fogo. O diálogo entre os rebeldes maoístas e o governo filipino estava interrompido desde 2012. Este caso já anda em negociações desde 1986, altura em que o governo iniciou conversações com a Frente Democrática Nacional para por fim a uma revolta no interior das Filipinas e que já matou mais de 40 mil pessoas. Mais de 500 presos políticos estão detidos, incluindo 19 membros da equipa de negociação dos rebeldes.
Duterte prometeu durante a campanha eleitoral presidencial acabar com todas as rebeliões nas Filipinas, incluindo o conflito com os rebeldes islâmicos que já matou mais de 120 mil pessoas e obrigou ao deslocamento de dois milhões ao longo dos últimos 47 anos.
Em termos internacionais, as Filipinas ocupam uma posição geoestratégica importante no contexto asiático. Localizadas entre a China, Taiwan, Malásia, Indonésia e o Vietname, encontram-se envolvidas numa disputa com a China, e Taiwan, relativa ao controlo de zonas marítimas com o seu o seu mais recente episódio na «construção» de mais uma ilha, por parte dos chineses, no Scarborough Shoal, perto de Manila. A tensão que se vive no Mar do Sul da China está ao rubro devido ao facto de se estar a pouco dias de conhecer a decisão do Tribunal Internacional do Direito do Mar sobre as ilhas e recifes em disputa. Autoridades ocidentais dizem temer a reacção da China face à decisão judicial, que se espera ser favorável às pretensões filipinas, e que corresponde aos anseios dos Estados Unidos da América cujo objectivo é a procura de aumento da sua área de influência geoestratégica e geopolítica na Ásia.
É com alguma apreensão que o Ocidente olha para o novo presidente filipino. Na balança está de um lado o facto de as Filipinas serem um aliado dos norte-americanos na «guerra» contra o poderio militar e económico chinês e, do outro lado, os receios de constantes violações dos direitos humanos. Para que lado vai a balança pender é algo que só o tempo dirá. Contudo, atendendo ao passado e àquilo que Duterte prometeu na campanha eleitoral, temo que a dignidade humana seja coisa para valer cada vez menos nas Filipinas. A resposta ao título desta crónica, «Quo vadis Repúbliká ng̃ Pilipinas?», ou seja, para onde vai a República das Filipinas é algo que o futuro se encarregará por responder. Resta esperar que aquilo que Adriano Moreira chama de «valores asiáticos», isto é, um regime democrático assente no desrespeito pelos direitos humanos e pela liberdade, não esteja a ser posto em prática num país asiático tão importante para os interesses do Ocidente.
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