quinta-feira, 21 de julho de 2016

E NÃO SE SAUDARAM NA PAZ DE CRISTO – VII (Por fim, não se saudaram na paz de Cristo)

ANABELA BORGES
Chegamos agora ao fim da publicação, em tranches, do conto “A Tundra”. Nesta saga, Lisinha, a personagem principal, vai-nos guiando através das suas memórias. Desta feita, levanta-se o contingente da Gripe-A, que impunha novos comportamentos à população, mas não é desta que a missa voltará ao normal.

Tudo pode acontecer neste cemitério de memórias de uma povoação do Norte de Portugal, memórias atestadas de crenças, vícios, amizades e desavenças, numa história que se diz atemporal.

O vírus foi à vida, “Vai-te, satanás”. Tudo não passou de um grande exagero, “Fantochada. Ora essa”. O Ministério da Saúde levantou o contingente, lá pela Primavera. Tudo voltou ao que era antes. Ou, pelo menos, os comportamentos voltaram ao que eram antes. Já a professora não gritava com o menino, “Vai lavar essas mãos”, só porque ele se esquecera de espirrar para o cotovelo; já não se desinfectavam, desesperadamente, as pessoas, como quem fosse romper a pele, para o bicho não lhes pegar. As missas voltaram ao que eram antes.

Ora, estavam quase todas as pessoas do lugar e arredores na missa de sétimo dia da dona Almerinda – ninguém queria que o espírito dela, por ventura, se agitasse, ninguém queria mostrar ódios ou rancores, ninguém queria lançar renúncias –, quando o padre, perante o assentimento de mais de metade da assembleia a acenar com a cabeça, “amém, amém”, cumprindo a sua obrigação, recomendou, frisou mesmo, que não guardassem rancores, que não renunciassem a sua alma, que velassem por ela, alguém se lembrasse de lhe acender uma vela de vez em quando. Que a deixassem seguir o seu caminho, que, quanto mais, “Não levantemos falsos testemunhos”, nem se havia provado que tivesse sido ela a autora da proeza de que, há pouco mais de uma semana, tinha sido acusada.

“Foi ela”. A voz ouviu-se – firme, límpida, com a evidência de quem não conseguiu calar-se, com a entoação de quem tinha a certeza do que estava a dizer, vinda da nave central da capela. Era Lisinha. Cruzou os braços, encolheu ligeiramente os ombros, baixou os olhos e esperou, a ponta do pé direito a bater nervosamente no chão. Uns olhares para cima, outros para o lado, uns bicos de assobio, só ar, sem som, porque não se assobia na casa do Senhor, o ar de quem disfarçava, como se não tivesse ouvido. Por fim, um rumor de aclarar gargantas. De repente, estourou uma enorme discussão. Havia, agora, os que tinham consentido nas palavras do padre, mas havia, ainda, os que não esqueceram quem fora a dona Almerinda.

O padre indignou-se – que não podia ser, na casa do senhor, que era indecente – e abandonou a igreja, pela sacristia, os paramentos numa revoada furiosa. Meteu-se no Audi preto e desapareceu dali. A discussão durou ainda alguns instantes, entre os que se assanhavam e os que pediam calma, até que alguém jurou ter ouvido um brado vindo das traves da abóbada. Calaram-se, saíram aos atropelos, benzendo-se, até só restar a chefe do coro, afilhada do padre e filha do organista, que, com zelo, cuidava de fechar a porta da igreja, e seguiu, no seu modesto carrinho, para a casa do padre, onde morava e trabalhava de mulher-a-dias.

E não se saudaram na paz de Cristo. 

FIM
Excerto do conto “A Tundra”, In “Conto por Conto”, de Anabela Borges, publicado e premiado em 2011 pela editora Alfarroba.

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