PAULO GUINOTE |
As últimas semanas têm sido marcadas na área da Educação por um processo de mistificação da opinião pública que se pode desdobrar em duas vertentes principais, uma mais pública e outra mais oculta.
A vertente mais pública é a de uma renovada retórica de combate ao insucesso escolar, com um aparato “formador” em que alguns comissários político-pedagógicos do ministério da Educação arregimentaram directores e algumas chefias intermédias para lhes espalharam a velha fórmula do Direito ao Sucesso e repetiram “formações” desempoeiradas de há um par de décadas e um portefólio de “boas práticas” que se resumem, quase sempre, em criar grupos de nível de desempenho entre os alunos, mais ou menos temporários, desenvolver estratégias diferenciadas de ensino-aprendizagem e, dessa forma, atingirem obrigatoriamente um sucesso quase total, excepto se os alunos nem aparecerem na escola. Tudo coberto com uma parafernália de documentação para registar diagnósticos, estratégias, critérios, perfis, implementações, avaliações intermédias, reavaliações, reformulações, etc, etc, etc. Às escolas e agrupamentos foram solicitadas réplicas – na forma de planos específicos de promoção do sucesso escolar – da formação recebida, como se ninguém tivesse ouvido falar de tais coisas e fosse, de novo, necessário evangelizar os professores, sempre os únicos responsáveis pelo insucesso dos alunos quando a facção bem-pensante e eduquesa do PS toma o poder no ME.
A vertente mais oculta do processo em curso passa pela generalização da transferência de muitas competências que actualmente ainda residem nas escolas para as autarquias, de modo a que estas se possam candidatar a verbas com origem europeia, tanto para infra-estruturas como para “projectos” de combate ao abandono escolar. Desta forma, passam a ser as autarquias, individualmente, ou as sub-reptícias comunidades intermunicipais, a ficar com as verbas destinadas à Educação a que depois as escolas terão de concorrer para desenvolverem os seus próprios projectos. O argumento político destinado a mistificar a opinião pública menos informada é que assim se “aproximam” as decisões das populações, quando na verdade o que se passa é o esvaziamento da autonomia das escolas e a sua submissão a uma dupla tutela, do ME e das autarquias locais, desaparecendo a possibilidade de acederem directamente às verbas disponíveis.
A combinação destas duas vertentes resulta num discurso que mobiliza conceitos e objectivos contra os quais parece mal estar-se contra (quem, em seu perfeito juízo, poderá afirmar-se contra o sucesso dos alunos?), mas que é um discurso enganador porque deixa escondido que o sucesso não se decreta por papel, responsabilizando unilateralmente as escolas e os professores pelo sucesso dos alunos e usando a Educação como uma espécie de véu e mecanismo de resolução (aparente) de problemas sociais muito graves. E é um discurso igualmente enganador porque esconde que esta é uma forma encapotada de financiar e recapitalizar as finanças locais através de uma transferência de competências que vale para os autarcas (como se constata pelas recorrente declarações da ANMP) tanto quando for a dimensão do “envelope financeiro” recebido e mínima a comparticipação própria. Alegam-se enormes bondades das medidas, um interesse enorme na melhoria das condições educativas, mas, no fim do dia, o que conta mesmo é o que se recebe em troca. E quanto, a nível central, se poupa numa lógica de Educação Low Cost para o Orçamento de Estado.
Por fim, é muito importante que atentemos nos laços que se vão estabelecendo em torno da produção e execução de diversos destes planos - a nível de escola, mas principalmente a nível (inter)municipal - com o recurso a um outsourcing nem sempre transparente. A encomenda de “estudos” e “projectos” a “empresas” a que antes não se conhecia tal área de actividade ou a centros universitários de investigação a que estão ligadas algumas pessoas que também surgem publicamente a defender a bondade da transferência de competências ou a fornecer “formação” remunerada nestas matérias não é algo ilegal mas é, de forma clara, algo que levanta muitas dúvidas éticas. Pois há quem ande a legitimar “cientificamente” a tomada de medidas das quais acabam a beneficiar de forma mais ou menos directa num emaranhado de relações pouco claras. Algo habitual entre nós, mas que não é de bom tom denunciar porque há sempre quem seja amigo de um amigo de um amigo que só anda a fazer pela sua vidinha em tempos de crise.
Não duvido que, com todo este espartilho, o sucesso aumente para níveis estratosféricos e venhamos a ter, no prazo de um a dois anos, muita gente, a nível central e local, a reclamar a responsabilidade por se ter conseguido mais sucesso com menos dinheiro do orçamento numa lógica de continuidade do fazer mais com menos. Se os alunos ganham com isso? A médio prazo perceberemos que é um sucesso ilusório, mas então já os relatórios de gerência e contas estarão encerrados e ninguém será responsável.
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