quinta-feira, 7 de julho de 2016

E NÃO SE SAUDARAM NA PAZ DE CRISTO – VI (o mal com o mal)

ANABELA BORGES

Desta vez, a publicação, em tranches, do conto “A Tundra” traz-nos um episódio bastante caricato, passado na pacata vila, e contudo, baseado numa história real.


É ler para crer. Mas acreditem que aconteceu, assim mesmo! 


Tudo pode acontecer neste cemitério de memórias de uma povoação do Norte de Portugal, memórias atestadas de crenças, vícios, amizades e desavenças, numa história que se diz atemporal.


“Triste Almerinda, energúmeno, criatura insuportável. Sempre desprezaste tudo e todos e agora estás velha e condenada a ficar sozinha para o resto dos teus dias. Ninguém te liga, ninguém te quer. Fizeste mal a muita gente. A tua filha despreza-te, os teus netos ignoram-te. Tens a paga. Só te dás com as malditas das Vigoilas, que são reles como tu”. Lisinha mantivera sempre afastada a dona Almerinda, apenas lhe falava por cortesia, mas nunca lhe dera a mínima confiança. Sempre vira nela uma má influência para a sua casa.

[…]

Por altura do Carnaval, as Vigoilas […] era com uma visível boa disposição e maus instintos que falavam com a velha Almerinda, sentadas nos mochos, a debicar os panos, à porta de casa, em frente ao café Dó-ré-mi, “Vai ao café, dona Almerinda”, “Vou. Vou tomar qualquer coisa”, “Faz bem, dona Almerinda”. Lisinha passava para a cabeleireira, “Boa tarde, senhoras”.

A dona Almerinda tomava o seu galão, servido pelo contrariado dono do café, que bem sabia a quem servia, ó vício dos vícios, quando se tentou por um telemóvel, moderno, luzidio, desamparado, deixado sozinho numa mesa. Palmou-o. Ninguém viu. Foi à casa de banho, pagou o galão e saiu. Passou apressada pelas Vigoilas, “Até amanhã, meninas”, que levantaram as cabeças, “A dona Almerinda anda a fazer das suas”, “Anda, anda”, e vendo-se perseguida, escondeu-se no canelho, encostada a uma oliveira, esbaforida e entusiasmada. Foi quando um dos homens que frequentavam o café Dó-ré-mi, mediante as queixas do dono do telemóvel, decidiu ligar para o número, que assim era mais fácil localizar o aparelho. Lisinha regressava da cabeleireira, quando viu a figura triste que fazia a dona Almerinda, a saltar de susto e de surpresa, porque o telemóvel lhe tremia entre as pernas, “Que tristeza, mulher desprezível”. Lisinha parou ao fundo do canelho, de onde via sem ser vista. Numa aflição, a dona Almerinda, levantou a saia, retirou o objecto e atirou-o para o chão, “Está aqui, está aqui”, no preciso momento em que os homens se aproximavam. Começaram a acusá-la do furto, mas ela tudo negou. Lisinha contou que a vira ali, encostada à oliveira em feições de comprometimento. Quão vergonhoso seria contar tudo. As Vigoilas, dois pelicanos, levantavam e baixavam as cabeças, “Nós não vimos nada”. Mas a dona Almerinda não se livrou das culpas. Antes de anoitecer, muitos a viram, hipócrita mulher, a caminhar pelas bermas da estrada nacional, a cabeça baixa, com um cartaz ao peito, “NÃO SOU LADRA”. Figura triste.

Dias depois, Almerinda foi encontrada morta, em casa, no corredor da entrada, com a mão esticada para a porta. “Teria sido o diabo do vírus. Ela não andava muito bem, ultimamente”, porém o diagnóstico médico não deixava dúvidas: paragem cardiorrespiratória. Ninguém lhe valeu.

Tudo passa.

Sem comentários:

Enviar um comentário