LUÍS CUNHA |
Demasiadas vezes damos por adquirido aquilo que deve ser conquistado a cada dia e que por isso exige de nós determinação e resistência. Quase sempre é uma questão de comodismo. Por exemplo, é muito mais cómodo viver na certeza de que o fascismo não foi mais que um episódio trágico na história europeia, ditado pelo delírio de alguns loucos, do que procurar as causas profundas da sua emergência e discutir por que razão tantos homens e mulheres como nós, cidadãos comuns, aderiram a esse credo e contribuíram entusiasticamente para a desumanidade que trazia no ventre. A vitória dos aliados levou à conversão geral às virtudes da democracia mas houve um preço a pagar por esse consenso. O preço imediato foi o esquecimento e o perdão, mas o preço mais alto é aquele que começamos a pagar agora; o preço que resulta de termos permitido as condições para que o Mal, que ficara adormecido, esteja agora a despertar, trazendo com ele os demónios que ingenuamente acreditámos ter destruído.
O consenso democrático, ou, como dirão alguns, o resultado da generosidade dos vencedores, adormeceu a besta sem todavia a destruir. Se a Alemanha, apesar de tudo, se viu confrontada com os crimes cometidos, outros países e outros responsáveis escaparam entre os pingos da chuva. Na Áustria foi-se de amnistia em amnistia, de tal forma que em meados dos anos 50 já não havia nazis nem aparentados, desde os que defenderam o «Anschluss» com a Alemanha ainda nos anos 30, até aos que colaboraram ativamente com o nazismo – o exemplo mais mediático será o de Kurt Waldheim, que foi secretário-geral da ONU nos anos 70 e presidente da Áustria em 1986, altura em que veio a público um passado nazi indesmentível e que acabou por assumir, ainda que parcialmente. Mesmo deixando de lado o leste europeu, integrado num novo império, o soviético, que não hesitou em aceitar a colaboração de antigos nazis sempre que isso se revelou útil, a integração de convictos fascistas na nova ordem europeia aconteceu também em países que haviam de fundar a CEE, como a França, a Holanda, a Bélgica ou a Itália.
Em nome da pacificação e em defesa das virtudes do esquecimento silenciou-se a memória e deu-se espaço ao sono dos vencidos, que verdadeiramente nunca estiveram convencidos. Em 1946 Primo Levi, um judeu sobrevivente de Auschwitz, propôs a um conhecido editor de esquerda, Giulio Einaudi, a publicação das suas memórias do campo de extermínio. A obra foi rejeitada, acabando por ser publicada por uma editora marginal e de província, com uma pequeníssima tiragem e acabando por quase não ter distribuição. Levi precisou esperar mais de uma década para que a Einaudi republicasse a obra e surgissem algumas traduções – ainda assim, a mais prestigiada editora francesa, a Gallimard, apenas publicou esta obra após o suicídio do autor, ocorrido em 1987. Aprisionado e deportado por italianos para a Alemanha de Hitler pelo bizarro governo fascista da República de Salò (evocado por Pasolini no filme «Salò ou os 120 dias de Sodoma»), a sua história nada tinha de conveniente para o desejado apaziguamento dos opostos.
O caso francês é, no entanto, o mais relevante, tanto em termos absolutos, pela importância económica, política e cultural do país desde o pós-guerra, como também em termos relativos, quer dizer, tendo em conta o protagonismo assumido pela política francesa por estes dias. À semelhança de outros países, também a França virou costas ao seu passado fascista. O regime de Vichy ficou rapidamente reduzido a uma espécie de irrelevância histórica, obra de Pétain, Laval e mais uma dúzia de colaboracionistas, esquecendo o que historiadores como Tony Judt nos recordam: pelo menos até final de 1942 a esmagadora maioria da população francesa via em Vichy a autoridade legítima, encarando como natural a colaboração com os alemães. O Decreto Anti-Semita foi aprovado por franceses e aplicado por franceses, garantindo a entrega de judeus às autoridades alemãs no âmbito da Solução Final proclamada pelos nazis. A narrativa da heroica resistência e da ilegitimidade de Vichy foi a compreensível solução para a pacificação da sociedade francesa no pós-guerra, mas também houve um preço a pagar por essa narrativa consensual e pacificadora. O apagamento do passado fascista de muitos franceses com responsabilidade política bem como a sua integração no espaço público no pós-guerra não elidiu as ideias, os valores e os princípios de muita dessa gente.
O nacional-fascismo francês, que pode ganhar as eleições do próximo domingo, não nasceu com Marine Le Pen. Tem atrás de si uma longa genealogia e serve-se de velhíssimos símbolos e proclamações para se afirmar. Entra na cartilha a evocação de Joana d’Arc e a ideia de uma França ameaçada por estrangeiros, ao mesmo tempo que se esconde algumas das inconveniências em que se acredita – por exemplo o negacionismo do Holocausto que condenou o fundador da Frente Nacional e pai da atual líder.
No próximo domingo os franceses farão uma escolha, só que essa escolha não é já entre as visões alternativas que a democracia permite. Marine Le Pen, em rigor, não pertence ao «campeonato democrático». É antes uma jogadora que pretende ganhar um desafio para acabar com o jogo. Ganhando, Marine Le Pen levará a bola consigo, tudo fazendo para que regressemos a um tempo em que quem detinha o poder era o dono exclusivo da Verdade. Sendo Macron uma péssima escolha, Marine não é sequer escolha: votar nela é contribuir para que regresse o tempo em que o Mal absoluto devorou a Humanidade numa guerra cruel.
Antes que o Mal desperte de vez, recordemos o poema com que Primo Levi inicia o relato das memórias de um tempo que ameaça regressar:
Vós que viveis tranquilos
Nas vossas casas aquecidas,
Vós que encontrais regressando à noite
Comida quente e rostos amigos:
Considerai se isto é um homem
Quem trabalha na lama
Quem não conhece a paz
Quem luta por meio pão
Quem morre por um sim ou por um não.
Considerai se isto é uma mulher,
Sem cabelos e sem nome
Sem mais forças para recordar
Vazios os olhos e frio o regaço
Como uma rã no inverno.
Meditai se isto aconteceu:
Recomendo-vos estas palavras.
Esculpi-as no vosso coração
Estando em casa andando pela rua,
Ao deitar-vos e a levantar-vos;
Repeti-as aos vossos filhos.
Ou então que desmorone a vossa casa,
Que a doença vos entreve,
Que os vossos filhos vos virem a cara.
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