quinta-feira, 18 de maio de 2017

O TEMPO SOBRE O TEMPO

ANABELA BORGES
O tempo, o meteorológico e o cronológico, reflecte estados de alma. Julgo que é assim com a maior parte das pessoas.

Passo muito tempo da minha vida a cismar no tempo: no tempo que faz lá fora, no tempo que passou, no tempo que virá.

Talvez se eu não gastasse tanto tempo nisso, tivesse mais tempo para fazer outras coisas. É mais forte do que eu. É uma força grande que se exerce sobre a minha vontade – passar tempo a cismar no tempo.

Isso acontece por dois motivos: primeiro, porque o tempo frio deixa-me completamente “de rastos” (falando em tempo meteorológico); segundo, porque sou uma pessoa dada à contemplação, aprecio a solidão e o silêncio (falando no tempo cronológico e, neste caso, também psicológico).

Lembro-me, desde que tenho consciência de ser gente, de sempre me refugiar num cantinho, nos dias frios, dias cinzentos, dias de chuva. E de ficar tolhida dos sentidos e sorumbática.

Em dias frios, não podendo refugiar-me, fico com os pés gelados, o dia inteiro, desde o início da manhã até ao fim da tarde. Nessas alturas, apenas um banho quente me contraria o frio entranhado no corpo. Isso e umas torradas feitas no forno de lenha no conforto do lar-mãe.

De vez em quando, no tempo frio, faço amigdalites estapafúrdias que me prostram na cama sem dó nem piedade. 

Assim como assim, nestes estados de martírio, que eu não tenho motivos para gostar do frio, do vento, da chuva.

Eu não tenho motivos quase nenhuns para gostar do Inverno. E esse meu repúdio é tanto maior quantas as necessidades de sair de casa – sobretudo para ir trabalhar, porque não tenho como me proteger num lugar sem aquecimento e sem luz solar, que mais parece uma arca frigorífica. E, para maior castigo, a profissão não me permite ir de férias senão no Verão.

Aprecio, à distância, uma bela paisagem de Inverno, um pico coberto de neve, uma massa de brumas teimosas sobre a montanha ou o rio, um mar encrespado, de espírito revoltoso. Mas, como digo, à distância – se eu puder observar de uma janela.

Já o afirmei várias vezes: se pudesse, hibernaria aí por umas três semanas a cada Inverno. A minha hibernação aconteceria, certamente, durante o mês de Janeiro, que é o mais longo e o mais frio.

O meu tempo posterior de trabalho renderia muito, mas muito mais; a minha boa-disposição aumentaria; teria as baterias carregadas.

Sou uma pessoa muito mais forte com o bom tempo. Outro ânimo me agita, outra disposição. 

Eis que, então, tenho andado bem agradada com o (bom) tempo que tem estado nesta Primavera.

O tempo sobre o tempo: camada sobre camada; a vida a rolar como um giro de roda gigante; os dias uns sobre os outros, em séries de luz e sombra.

E assim vou andando, distraída nesta sucessão, e peço aos deuses que não me dêem castigo por estar a beber a luz que me alimenta as horas, que não me emaranhem o corpo de frio, que nem mortalha talhada a sopros gélidos. Que nem, que nem!

Que assim ando, e nem sempre reparo que sou feliz. Mas sou.

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