JOANA BENZINHO |
Nas ilhas do Arquipélago dos Bijagós, habitadas essencialmente pela etnia Bijagó, são as mulheres que mandam. É verdade. Vive-se aqui num registo matrilinear em que são elas que decidem as colheitas, que escolhem o namorado, o marido, que decidem do divórcio, ficam com a guarda das crianças em caso de separação, tomam as decisões mais importantes do quotidiano e, claro, gerem o orçamento do lar.
Verdadeiras mulheres multifacetadas, dedicam-se à agricultura, essencialmente arroz e amendoim (mancarra), andam na apanha do cumbé (bivalve muito apreciado na Guiné-Bissau), tomam conta das crianças, pilam o arroz, vendem no mercado, fazem a lida da casa e cozinham para as famílias, normalmente numerosas que caracterizam a sociedade guineense.
Nos Bijagós, a falta de cuidados básicos de saúde é ainda mais acentuada que no continente, numa Guiné-Bissau em que a taxa de mortalidade à nascença é ainda alta e em que a esperança média de vida não chega ao meio século.
Esta semana, presenciei essa realidade ao apanhar um dos barcos que agora faz a ligação entre Bissau, a capital, e a Ilha de Bubaque, uma das mais requisitadas por turistas e viajantes de negócios que se deslocam às ilhas.
Depois de meses sem ligações, em virtude da avaria do cacilheiro que partia de Bissau à sexta e regressava ao domingo, há agora dois barcos que ligam Bubaque e Bolama a Bissau numa base regular. Até há um mês, quem queria ir ou vir destas duas ilhas, tinha que recorrer a canoas, pouco ou nada seguras para chegar ao destino, o que sucedia entre uma ou outra historia de naufrágios com fins naturalmente muito pouco felizes,
Foi num destes barcos que viajei esta semana até Bubaque para uma estadia relâmpago de menos de 24 horas, entre mercadorias e os poucos passageiros. É sempre um passeio digno de registo, com o vislumbre das ilhas de Bolama e Galinhas do nosso lado esquerdo e mais tarde as bonitas ilhas de Rubane, Canhabaque e Soga a surgirem no horizonte, quando já nos aproximamos do destino final.
No regresso a Bissau, uma jovem chegou ao barco numa ambulância do hospital local acompanhada por uma menina e de um saco de soro que foi pendurado com um cordel numa viga que segurava a lona que nos dava sombra no porão. Entre peixe em caixotes, duas cabras, um porco que quase se afogava ao entrar no barco e várias galinhas como companhia de mão, atadas em cordéis qual trela, lá seguimos viagem ainda o dia mal despontava no horizonte. Destino, Bissau, onde eu esperava chegar depois de um cochilar embalado pelas ondas e de um pouco de leitura encostada às caixas que exalavam um forte odor a peixe e a mar.
Meio caminho ainda não estava feito quando a jovem mulher do saco de soro começa a queixar-se de fortes dores e se senta no chão numa tentativa de enganar o incómodo. E é aí que somos confrontados com a eminência de um parto em alto mar. No barco, sobrelotado de passageiros para os poucos bancos corridos existentes, abre-se de repente um espaço para que a mulher possa dar à luz. Quatro outras senhoras que viajavam no barco retiraram rapidamente panos da cabeça e outros que traziam enrolados ao corpo e cobriram o chão que lhe viria a servir de sala de parto bem como o seu próprio corpo. As luvas que trazia consigo no bolso são prontamente enfiadas por uma das mulheres (na Guiné, até muito recentemente, quem não se fazia acompanhar de um par de luvas quando chegava à maternidade por norma via-lhe vedado o acesso a um parto feito por um médico e/ou parteira no hospital) , outra agarra-a pelos braços e cada uma das outras segura uma das pernas. Ela contorce-se com as dores das contrações e tem ali vários braços a tentar mantê-la na melhor posição possível para que o bebé possa nascer. Os gritos da mãe são afogados pelo barulho dos motores e pelo bater das ondas no casco e este momento, que para ela parece não ter fim, prolonga-se por uns bons 10 minutos. A filha pequena que a acompanha assiste perturbada a tudo aquilo e chora, sem perceber o que está a acontecer. Puxo-a para mim e abraça-me com a força com que normalmente só nos agarramos a quem conhecemos. O medo é muito e soluça baixinho. Engano-lhe a angústia com um pouco de pão e queijo, um bem de luxo por aquelas paragens e que lhe faz nascer um brilho no olhar.
O bebé nasce, a mão geme com dores e de cansaço. É um rapaz. Ficamos em suspenso com o seu silêncio por alguns segundos. Ele não chora, apesar de uma das mulheres entrar numa espécie de transe e começar a bater palmas ao seu ouvido. É ai que ele é levantado, abanado e sujeito a umas breves palmadas nas costas que o fazem expulsar da sua pequena boca o que quase o matava por asfixia. E então chorou a plenos pulmões e nós respirámos de alívio. Uma lâmina nova ali serve para cortar o cordão umbilical e um pouco de fio dos panos tradicionais, passado por umas pingas de soro, serve para dar um nó junto do do umbigo do bebé.
Numa enorme azafama as mulheres ajudam a mãe a restabelecer-se, limpa-se a sala de partos improvisada com lixivia dada pelo capitão do barco, e a mãe volta a receber pelo cateter o soro saído do saco atado com um cordel na viga por cima dela. O bebé fica ali connosco e recebe no pulso uma pulseira que lhe é colocada pela mulher mais velha do barco, após uma pequena cerimónia em que ata a um fio preto um “segredo” que irá acompanhar o bebé no seu desenvolvimento e protegê-lo do mal. Bem sei que os bebés quando nascem não veem, mas garanto-vos que ele tinha os olhos arregalados e parecia absorver com a maior satisfação todo aquele improviso gerado em seu redor em alto mar.
A viagem ainda durou mais uma hora e, quando chegamos a Bissau com um passageiro extra, ninguém diria que aquela mulher tinha acabado de gerar uma vida em pleno porão. Mantinha-se muito direita no barco, provavelmente atordoada com tudo o que viveu, mas com uma dignidade e uma força que me deixaram siderada.
Não pudemos atracar no porto pois o cais estava ocupado, mas sim noutro barco, o que nos exigiu algum equilibrismo para sair de um, saltar para o outro vendo o mar como pano de fundo na folga entre os dois para só depois subir para um passadiço que nos permitiria chegar a terra firme. Eu precisei de ajuda, confesso, não conseguia sair dali sozinha. A jovem mulher, por si, acho que tinha superado todos aqueles obstáculos, não a tivessem amparado quase por imposição.
Finalmente sentei-me no carro e respirei fundo. Foi uma experiência única aquela que vivi. Tomei consciência quase de imediato que tinha acabado de assistir ao verdadeiro milagre da vida ali naquela travessia marítima em que a jovem mulher que entrou fragilizada no barco, me mostrou a resiliência, a coragem, a força, a dignidade e a verdadeira raça da mulher Bijagó.
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