MIGUEL GOMES |
Eram as palavras como tenazes folhas de oliveira, as sombras lânguidas paredes que circunscreviam os montes onde o teu sol, como luz que eras, se permitia descolorir para que todos os outros, como nós, cegos, orassem sem saberem versicular.
Pergunto-me se ponderavas tudo caminhar para isto.
Seria, Cristo?
Sobra-me, enquanto arrumo o que sou, as montanhas ao longe, cercadas por um mar agitado que nunca as banhou.
Não tenho medo de morrer, mas tenho um medo irracional de não viver.
Sobram-me as estradas sinuosas que, obrigatoriamente, calcorreiam quem não sabe voar.
Sobra-me a consoada e o anuncio, festivo, de que a neve é azul e o céu, esse, é da cor que eu quiser, porque tenho como parceiro este estranho homem, comido pelo tempo, abrigado sob um alpendre tolhido de fumo, acompanhado de dois santinhos, que irei saber, quando voltar atrás e o ler como quem acorda, serem nossa senhora e o menino jesus.
Garrincha, na falta de primaveras, é o meu conforto e a certeza profunda, enraizada, do tronco que sou.
É com o vento frio e um calor no ventre, que me dedico a admirar a legumeirada que se banha na corrente quente da sopa na tigela.
Uma divisão.
Um colchão.
Um caderno e um lápis na mão.
A catadupa dos invernos que fugiram ao verão.
Há vento, a granel, para quem goste dos sussurros.
Não me falta o enfeite de um Natal, assim a modos de presépio, com musgo a fazer de reis magos e um menino Jesus que nascerá. Plim! O microondas, perdão, o fogão a lenha, esgravata um grunhido e avisa-me que a caldaria está pronta.
Os cavacos esbaforidos passam a mão pela fronte limpando o suor, contentes, realizados, deixando-se depois cair de costas para as brasas onde, sabem, serão consumidos, ascendendo a um céu de fuligem, para choverem novamente aos meus olhos, que os levam onde nunca eles agora cavacos, ontem árvores, amanhã cinzas, sonharam, tal como eu, ir.
Assombrado, percorro os caminhos que traço, sem grande cautela, há na vida espaço para nós, eu e ela, a vida.
O calor transpira-se em mim, hoje sou rio.
Rio. Levo-me em levada e vou comigo cheio de nada, de bolso prenhe da mão fechada, os nós dos dedos vincados, as rugas anoitecem e acordam-se como os cerrados, ancorados. Felizes os que se portam em porto, rabelizados na maré de uma existência escoada num Cristo Rei, de pé, aguardando pacientemente a vinda de si mesmo.
Isto é a fé.
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