LUÍS CUNHA |
Apesar de nunca ter sido tocado pela graça da fé, Fátima vem-me interessando desde há muito tempo e por várias razões. Interessa-me, desde logo, pela imensa mobilização de crentes que consegue manter ininterruptamente desde há um século e que é sinal inequívoco de um forte enraizamento entre os crentes, que é interclassista, toca várias gerações e não está dependente do aproveitamento político do fenómeno, feito tanto pela Igreja como pelo Estado. Interessa-me, por outro lado, o processo de «fabricação de Fátima» e o papel aí assumido por diferentes agentes, desde os pastorinhos até à hierarquia religiosa, passando pelos meios de comunicação social. O primeiro destes focos não desmente o segundo: muito embora a fé em Fátima transcenda hoje a intencionalidade política dos seus promotores parece-me indesmentível que essa intencionalidade existiu e foi decisiva na promoção de eventos que nem sequer eram invulgares à época. Mas interessa-me Fátima ainda por uma outra razão, na verdade uma razão que liga as precedentes e também aquela que melhor se adequa à tematização que venho seguindo nas crónicas que aqui publico. Este foco de interesse remete para a importância da palavra, quer dizer, para a relação entre o oral e o escrito e também para os processos de transmutação das narrativas. Subjaz a este foco uma questão que continua a ser central para se perceber Fátima: a tensão entre formas de religião popular e a ortodoxia que governa a Igreja e que procura controlar e disciplinar as expressões frequentemente indómitas e perigosas que lhe escapam.
Em cem anos contam-se muitos dias, muitas luas e também muitas peregrinações, dando a Fátima uma espessura história que se expressa no muito que se escreveu e filmou acerca daquele lugar e dos eventos ocorridos em 1917. Numa louvável iniciativa, o Santuário de Fátima encetou há já uns anos a publicação da documentação crítica associada ao fenómeno. Neste momento foram já publicadas mais de oito mil páginas, dispersas por catorze tomos, num acervo vastíssimo que se iniciou com os primeiros relatos das aparições. Entre esses primeiros relatos, recolhidos nos Interrogatórios feitos aos videntes ainda em 1917 e publicados no Vol.1 da «Documentação Crítica de Fátima», e as «Memórias da Irmã Lúcia», escritas em vários momentos desde 1935, vai uma enorme distância. Nos cerca de vinte anos que medeiam estas duas datas muita coisa mudou em Portugal e na vida das pessoas ligadas a Fátima. Mais afortunada que os primos, que morreram pouco depois das aparições, Lúcia, a mais velha das videntes, recolheu ao convento, sendo nesse lugar singular e sob essa tutela que redige as suas memórias. Deixara para trás a criança que fora e com ela as crenças e medos que ajudam a explicar as aparições (ou visões, pois aqui as opiniões dividem-se) que haviam de a tornar beata a caminho de santa. O livro que escreveu, por ordem do Bispo de Leiria, é uma evidente reinterpretação do que vira ou julgara ver em 1917. Dirão os crentes que a idade e a aprendizagem lhe permitiram entender melhor o fenómeno que vivera em criança; dirão os céticos que a Igreja lhe guiou a mão, levando-a a escrever de forma mais conveniente e acertada. Haverá razão em ambas as interpretações, já que a diferença entre os dois enunciados nem sequer é demasiado grande. Talvez, afinal, tudo seja mais simples do que imaginamos, por exemplo se acreditarmos que apenas podemos ver o que já existe dentro de nós. Certo é que dentro da cabeça daquela três crianças existiam assustadoras visões e terríveis ameaças; figurações do Inferno, punições dos descrentes e salvação dos mansos. Através de «A Missão Abreviada», sinistra obra escrita pelo padre Manuel Couto e lida ao serão pela mãe de Lúcia, as crianças aprenderam, entre outros úteis ensinamentos, que no Inferno os pecadores uivam como cães danados. É certo que tomaram também conhecimento de coisas bonitas e edificantes, como as aparições de La Sallete, ocorridas em 1846, ante os olhos de duas crianças francesas. Muito do que conhecemos está no relato dessas duas crianças: uma luz resplandecente anunciando a Senhora, que aparece chorando, triste com a ingratidão dos homens, apelando ao sacrifício e à conversão e responsabilizando quem blasfema pelas duras penas vividos por todos. Vistas assim, à luz deste episódio francês e de outros semelhantes ocorridos naquela altura, nada há de novo nas Aparições de 1917: exigência de rezar o Terço; imposição de sacrifícios de reparação; consagração ao Coração de Maria; conversão dos pecadores, ou seja, tudo aquilo que povoava a imaginação dos crentes, sobretudo nos meios rurais e entre estratos populares, agregando práticas que conciliavam velhíssimas crenças pré-cristãs com a doutrina apenas vagamente ensinada na igreja.
Entre a voz das crianças, que nunca ganhou eco na palavra escrita, e o relato de Lúcia, tornada a versão canónica das Aparições, há mais que vinte anos de distância. Acérrimo crítico de Fátima, o padre Mário de Oliveira, no seu livro «Fátima nunca mais», procura distinguir entre Fátima I e Fátima II. Entra-se aqui numa outra esfera sensível aos crentes, a que podemos chamar «a utilidade de Fátima». Uma Fátima útil, sim, mas para quem, a que propósito e em que tempo? À Fátima dos primeiros tempos responde a Igreja de forma ambígua, misturando ceticismo com a convicção da utilidade das aparições como arma no confronto com as ideias anticlericais da República. Desconfiando da «verdade» do milagre de Fátima, alguns setores da Igreja perceberam que aquela narrativa casava bem com uma religiosidade popular antiga e solidamente enraizada. Marcada por correntes pietistas, esse fundo religioso vinha já sendo alimentado por iniciativas clericais recentes, como o fortalecimento do Rosário e o incentivo à prática da confissão e comunhão. Confrontados com as primeiras peregrinações a Fátima, intelectuais católicos ligados ao Centro Católico Português e ao Centro Académico da Democracia Cristã, que chegou a ter como dirigentes Oliveira Salazar e o futuro Cardeal Cerejeira, terão convencido o padre Nunes Formigão, professor no Seminário de Santarém e que interrogara os videntes, a divulgar e dar destaque ao «milagre». Demasiado próxima de uma interpretação ingénua e potencialmente perigosa das aparições, Lúcia de Jesus foi então afastada, silenciada e transformada numa outra pessoa, passando a responder pelo nome de Irmã Maria das Dores.
A esta Fátima ainda indecisa, ainda algo descrente das suas potencialidades, sucede mais tarde uma Fátima renovada, disponível para um novo uso. À Fátima que resistia ao anticlericalismo republicano sucede a Fátima anticomunista, tornada sólida arma para um salazarismo em processo de afirmação. As palavras ajustam-se, então, a um novo «caderno de encargos». Vigiadas e domesticadas, elas não são já as vozes dos pastorinhos de 1917 mas as de uma freira que aprendeu as regras de um ofício e deu forma a uma nova «verdade». Sem dúvida que continua a ser feita de penitência e sacrifício mas inova ao pedir a conversão de um país, a Rússia soviética, que se apresenta como o Inferno na terra e a maior ameaça à cristandade. Feita de palavras, escritas ou sussurradas, a interpretação do que aconteceu em Fátima passa a pertencer menos a quem assistiu às aparições do que a quem tem o poder de enunciar a mensagem da Senhora como uma boa-nova. Foi o que fez o Cardeal Cerejeira quando confidenciou a Salazar, seu amigo de Coimbra e com quem partilhara quarto e confissões de fé, que algo o ligava ao milagre de Fátima. São de novo as palavras a fazer caminho e a construir sentido, desta vez através de uma carta pessoal: «Tu [Salazar] estás ligado e ele [milagre de Fátima]: estavas no pensamento de Deus quando a Virgem SSma preparava a nossa salvação. E tu ainda não sabes tudo… Há vítimas escolhidas por Deus para orarem por ti e merecerem para ti».
Talvez haja, afinal, uma Fátima III, a atual, dispensada já de legitimar Salazar e o Estado Novo e sem necessidade de fazer de fortaleza contra a ameaça comunista. Essa Fátima também me interessa, pelo menos naquilo que nela há da genuína expressão popular, de crendice, de fé num milagre redentor que nos cure ou nos torne ricos, pouco importa. Fé nos poderes irrestritos de velhos deuses e novos santos; forma célere de comunicação entre céu e terra, capaz de dispensar a mediação de padres, cónegos, bispos e cardeais. Uma fé que se fia em algo de mais profundo, algo que luta e esbraceja contra aquilo a que se chamou o «desencantamento do mundo». Uma fé que foge aos ditames da razão e que nessa fuga se desgasta e desconsola no milagre que fica por cumprir, para logo renascer renovada e com o vigor de uma esperança reencontrada.
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