terça-feira, 2 de maio de 2017

O CORAÇÃO

BRUNO SANTOS
O Coração é o operário do corpo.

É ele que continuamente trabalha para que não falte alimento à sua prole de órgãos, assim como o fole de um ferreiro que mantém viva a chama da fornalha. Na sua incansável luta diária, o Coração saudável mantém um admirável sentido de justiça e equidade, dando a todos conforme a necessidade de cada um, provendo o pão de cada dia ao grande e ao pequeno, ao ávido e portentoso fígado como à mais humilde e longínqua célula.

Ele é o verdadeiro Mestre da Grande Obra que continuamente se realiza na carne e é ele que guarda, num canto secreto e inacessível, a memória da vida em todos os seus mais ínfimos detalhes, num diário onde está escrita toda a eternidade.

Mas, certo dia, o Coração acordou sobressaltado com uma estranha notícia. Um mensageiro do Céu, o Cérebro, trouxe-lhe uma peremptória missiva, repleta de instruções novas, quase todas contrárias à Lei Fundamental da Homeostase, o protocolo que o Coração seguira até aí com grande disciplina para que ao Corpo nada faltasse e se mantivesse entre todos os seus órgãos a harmonia necessária à boa saúde.

A missiva dizia que os Rins estavam a consumir sangue acima das suas verdadeiras possibilidades, sangue esse muito necessário ao poderoso Cérebro, e que era forçoso reduzir drasticamente o seu fornecimento. A carta dizia que a função que os Rins desempenhavam, a de manter limpo o sangue que alimenta todo o organismo, podia ser levada a cabo com menos recursos, com menos “desperdício”, como lhe chamava o autor da carta. O coração agiu em conformidade com a ordem e passou a bombear muito menos sangue para os rins e só em certos dias da semana, enviando para o Cérebro o que conseguia poupar.

Mas a carta também dizia que o Fígado era um esbanjador inveterado. Era um órgão que tomara proporções gigantescas e que consumia uma grande parte dos recursos do Corpo sem que se notasse um claro benefício dessa despesa. Era necessário, portanto, reduzir também o fornecimento de sangue ao fígado, passando-o para metade. E só à sexta-feira à noite. O sangue que se poupasse com esta inteligente medida deveria ser enviado também para o Cérebro.

O Coração assim fez.

A carta repetia as mesmas instruções para praticamente todos os órgãos do corpo. Era dever do Coração cortar com grande austeridade o fornecimento de sangue, uma vez que o Corpo se havia habituado a um consumo que, dizia a carta, estava muito acima das suas possibilidades e tornava insustentável a sobrevivência do organismo. O sangue que fosse poupado com esta medida deveria ser remetido ao Cérebro para que este, na sua inatingível e sacrossanta inteligência, decidisse o melhor destino a dar-lhe.

Não foi preciso muito tempo para que os efeitos de tão drástica atitude se começassem a notar. Os Rins passaram a ter grande dificuldade em manter o sangue limpo. Os pés e as mãos incharam, a urina escureceu e ganhou um cheiro pútrido, a pele ficou pálida como uma lua triste, a pressão arterial aumentou vertiginosamente, sacrificando muito o próprio Coração, e os dentes começaram a cair.

Com o Fígado sucedeu o mesmo. Sendo um dos maiores órgãos do corpo, a austeridade a que passou a estar sujeito retirou-lhe quase todo o seu poder anímico. Além de pálida, a pele ficou amarela. Os olhos perderam aquela alvura de neve que os caracterizam normalmente e tomaram as cores da icterícia, o amarelo esverdeado da morte. O fel foi o sabor que passou a dominar a boca e o pensamento, a comida deixou de ser apetecida e todo o corpo passou a deambular em desequilíbrio, como um boneco desnorteado.

A morte espalhava-se rapidamente pelo corpo quando, naquela manhã de Inverno, o Coração acordou frio e exausto. Ao olhar pela janela para os ramos secos do arvoredo, sobre o qual começavam a cair os primeiros raios da aurora, percebeu que algo de muito errado se passava com o Cérebro, pois não era compreensível que tivesse escrito uma carta como esta, cheia de castigos inúteis e plena de uma intenção de morte e aniquilamento. Ergueu-se a muito custo da cama e respirou fundo, decidindo que, a partir desse dia, seria Ele novamente a tomar as rédeas do destino e que desobedeceria, pela primeira vez na sua vida, às injustas e destruidoras ordens do Cérebro.

Passou então a bater com mais força e a bombear com grande vigor o precioso sangue para todo o corpo, para todos os órgãos, com equidade e justiça, a todos conforme a necessidade de cada um, tal como manda a Lei Fundamental da Homeostase que o próprio Coração jurou defender e fazer cumprir.

O Cérebro protestou violentamente, ameaçou com a morte(!) e gritou absurdos incompreensíveis acerca da sua autoridade suprema. Mas o Coração prosseguiu determinado o seu Dever, impulsionado apenas pela memória da vida que guardara num canto secreto e inacessível.
Demorou tempo e custou muito, mas, pela Primavera, quando os ramos do arvoredo se encheram de nova folhagem e a passarada voltou a entoar as canções de Deus, os olhos do corpo abriram-se e eram brancos outra vez. Os pés e as mãos desincharam, a pressão arterial baixou e a pele recuperou o tom das rosas.

O sabor a fel desapareceu da boca e do pensamento.

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