domingo, 7 de maio de 2017

M Ã E

MIGUEL GOMES
O frio tinha ficado para trás e voltaria apenas quando, ao lume, as frieiras se lembrassem de arder por dentro, como o rubor de um amor que se ama porque não se sabe sentir outra coisa. 

As mãos sobre a roupa, para a frente e para trás, raspam o sumo do velho camisolão, que se esgota no tempo e no corpo de quem vai cobrindo dias com pedações de lã, no andar e no sentir.

Vários invernos se solsticiavam, a sua voz embora falasse era muda, silenciada por quem a ouvia, mas nunca a escutava. Lembrava-se de vidas solteiras quando por entre a espuma do detergente surgiam pequenos tufos de claridade límpida onde o céu lá em cima espreitava e a relembrava mulher, com a madeixa de cabelo a cair sobre a fronte e a sensualidade ganha na recordação das ruas percorridas com luxúria inocente de quem não se sabe nobreza e raínha-se por entre os fins de tarde no caminho do tanque do fontanário para casa dos pais, invólucros esquecidos de apelidos de solteira.

“Mãe, o que é o comer?” sarapintado depois de caírem arrancados dos calcanhares as sapatilhas puídas pelas jogatanas de futebol. Era apenas a recordação que tinha parido, na inocência e ignorância dos recéns vintes de idade, aquele “mãe” ressoado com o desprezo da juventude era o prenúncio da adolescência e posterior adulteídade máscula de um mundo bipolar onde se esquece de si quem nunca se lembrou de ser gente.

Passar-se-iam milénios e outros énios se os houvesse para se perceber a feminidade da Primavera e de todas as estações, no descuido divino de fazer de si mesmo dois e, dos dois, martelar em barro um e desbravar de outro uma outra. O mundo sabe que é mundo não por ter sido criado, mas por ter sido servo e na subserviência encontrar o maior tesouro que o mundo não tem, a palavra mãe.

Todos os dias corriam ao montado do tanque de cimento, o ondulado esbranquiçado por onde rasgavam cansadas roupas, vestes e despes de mãos rompidas e cálidas. O suor no verão, o frio no inverno, as mesmas mãos firmes e gretadas, a aspereza tratada a golpes de esbranquiçado creme, o tilintar dos tachos ao lume e a corrida a galgar os degraus antes que um dos molhos transbordasse e inadvertidamente apagasse o lume que tremia, como a vida, saído das ranhuras do disco do fogão.

A mãe é um sabor, uma fome que nos alimenta, é um sentimento onde lavamos aquilo que só ela sabe que somos. A mãe é ser terra e céu e em qualquer um deles termos certeza absoluta do nada que pisamos.

A mãe é também um pai, um filho, é um cadilho, é um trocadilho por onde brincamos com a imortalidade e viramos na esquina para fugir da ideia que, um dia, ser mãe será ter saudade do útero seguro onde de óvulo a mórula fomos embrião e saber sermos hoje nada.

A mãe é o cuidado e o afago na barriga dilatada, é o choro convulsivo de quando se tem um nada e do nada fazer o tudo.

A mãe é um tanque abandonado, onde as suas mãos e braços cansados moveram o mundo, é o infinito que gostaríamos de ter no relógio e olhá-lo, de segundo em segundo.

Mãe, chamo-te, quem me teve e quem me tem, ser do mundo e ter-te, ser eu e, sem ti, ser ninguém…

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