ANABELA BRANCO DE OLIVEIRA |
João de Melo (1988), o escritor, e Zeca Medeiros, o cineasta (2001) projetam, em Gente Feliz com Lágrimas, o inevitável paralelismo entre a voz narrativa e a imagem cinematográfica na construção do olhar e na captação do movimento.
Mar e barcos definem o fascínio de Amélia, na nítida presença dos planos cinematográficos no texto literário, e o fascínio de Zeca Medeiros na constante alternância entre vozes, espaços e tempos sempre entrecortada pela presença do mar – o Atlântico dos Açores e de Lisboa – e dos barcos – os navios que partiam no passado para o continente europeu e americano e os cacilheiros do Tejo que comandam a vida lisboeta e o olhar genesíaco e criativo de Nuno – no discurso fílmico.
João de Melo projeta a câmara subjetiva de Maria Amélia que enuncia um olhar de distância ‑ “do outro lado da baía” ‑ em relação ao mar da sua vida. A nítida incidência de planos gerais constrói a imensidão da baía e do porto no desejo de sair da Ilha. O sucessivo estreitamento do campo de visão, na sucessão de planos de conjunto e de planos médios, conduz ao grande plano das caixas valorizadas como símbolo de contacto com o exterior, como recordação dos presentes falhados da infância, como impulsionadoras do sonho de saída.
A noção de distanciamento e de afastamento de mar e de barcos projeta o fascínio de Amélia e de Nuno, num travelling subjectivo enunciado na rememoração das viagens marítimas, no texto literário, e em travellings laterais nas imagens a preto e branco da viagem de Nuno para Lisboa no texto fílmico.
João de Melo e Zeca Medeiros projetam o cinema com elemento intrínseco do processo criativo. Na construção de uma imagem do mundo e na explicação do presente real, ocorre, frequentemente, uma comparação explícita com o universo cinematográfico. O texto literário enuncia o mistério e o suspense dos cinemas do Canadá, Nuno vê o silêncio e o interior das casas dos Açores nos filmes de Glauber Rocha, Luís faz lembrar o Bud Spencer do Cowboy Insolente, Histórias de Nova Iorque de Scorsese, La Strada de Fellini e os Pássaros de Hitchcock marcam presença no processo criativo de Zeca Medeiros. A televisão passa um filme com Gene Kelly e o barco da saída de Nuno para o continente é a passagem marcadamente intertextual de E la nave va de Fellini. O percurso de memória de Amélia organiza-se “como num filme”. Nuno, em frente à máquina de escrever, projeta na voz mas sobretudo no zoom que focaliza a escrita mostrando a sequência de palavras, algumas vezes repetida ao longo do texto fílmico - “vejo o passado a passar como um velho filme a preto e branco” - “vejo o meu passado como um velho filme a preto e branco”.
A montagem do texto fílmico define esta sequência de palavras num processo marcadamente cinematográfico: sequências e personagens do passado são construídas a preto e branco. Mas, no preto e branco da dureza do trabalho, da pressão dos castigos e da opressão política surgem as tonalidades de cor projetadas na lanterna mágica do tio Herculano, no teatrinho de marionetas, também por ele construído e cujas histórias inventadas por Nuno faziam sorrir os irmãos, na presença forte do azul do mar durante a primeira ida de Amélia e Nuno ao mar e no tocador de flauta “mágica” que personifica a tentação de Nuno e o desleixo na proteção do galinheiro.
Perante a pressão do castigo paterno, Nuno deseja uma solução cinematográfica: a chegada do justiceiro que salva a personagem da forca nos filmes americanos. É a montagem paralela criada por Zeca Medeiros estruturando a sequência da cavalgada dos cavalos brancos libertadores, “como nos filmes” que, em câmara lenta, o acompanham nos sonhos da infância e nos pesadelos identitários após a terrível sova do pai. As sovas do pai estruturam o processo de montagem interna e externa do texto fílmico. A montagem alternada projeta a descontinuidade entre a violência do castigo e a preocupação extrema da avó Olinda. No processo rememorativo de Nuno frente à máquina de escrever, a montagem paralela projeta imagens do ataque do milhafre ao galinheiro e imagens dos ataques em Os Pássaros de Hitchcock. A violência das sovas dirigidas a Luís ou Nuno são sempre apresentadas em câmara lenta. No percurso onírico de Nuno durante a prostração, consequência da sova do pai, Zeca Medeiros define percursos de montagem impressionista, num ritmo acelerado, onde imagens de lobos, milhafres e cavalos brancos libertadores em plano médio alternam com um grande plano do pai crucificado numa especificidade estética apenas percetível pelo espectador que conheça bem o texto literário. Nele, o cruzamento das imagens e a noção de fondu enchaîné são nitidamente assumidos por Nuno, de uma forma tripla, durante a convalescença dos ferimentos causados pela sova paterna.
O tio Herculano introduz no imaginário de Nuno a absoluta necessidade da luz e do movimento. A lanterna mágica que ele lhe oferece é a lanterna mágica do cinema que num outro filme – O Tempo Reencontrado de Raoul Ruiz - fascina o olhar de uma outra criança, Marcel Proust. No texto fílmico, o sistema de transição para os flashbacksdefinem, aliás, uma memória involuntária marcadamente proustiana.
Em Gente Feliz com Lágrimas, João de Melo e Zeca Medeiros projetam o inevitável e intrínseco diálogo entre literatura e cinema. Porque o cinema está omnipresente na memória estética de um escritor e a literatura está omnipresente, como alavanca, no processo criativo de um cineasta.
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