MIGUEL GOMES |
Arredo-me das letras como de mim.
Deixo-as desencavadas e encostadas na leira, ao frio e à chuva que tem caído lá fora e cá dentro. A sementeira não se faz pela noite e, contudo, é nela que encontro terreno fértil para, como bicho, me aninhar em mim ao chegar ao ninho, ombreando força com as sombras ondulantes e erráticas que a vela projecta na sua dança sobre o pavio.
Já nem sei do que me rio.
Descansa o resto do pão ao meu lado e nesta côdea amarelada dou por mim fortuna de áureos nunca tidos, que não me pesam, e, talvez assim, por isso, por mim, me sinto afortunado.
Saga de quem se abriga num qualquer beirado.
O dia passa a cavalgar por mim, literalmente, graciosamente e cavalarmente, adverbiando as palavras para que possa saltar os obstáculos que se ausentam e, como tal, não se vislumbram ou percebem.
Um pouco como eu.
O frio começa a sorrir, vem subindo as pernas da cadeira, torneando os veios da madeira e encavalitando-se nos meus pés cobre lentamente o meu corpo, como só as mães sabem, levando-me a adormecer hipotermicamente. É neste semi-estado, desacordado e desadormecido, que me empoleiro em mim e me deixo de procurar estrelas onde elas sempre brilham para as encontrar debaixo deste bocado de pão, no isqueiro que me queima os dedos, no som do vento que se faz canção, no velho sussurrado adormecido no jardim, como o valado brotado do relógio que tiquetaqueia em mim.
Hoje estou adiantado em relação ao meu atraso, eis a razão de chegar, agora, ao fim.
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