NUNO GAROUPA |
Tenho uma grande estima pessoal por António Guterres. Admito que simpatizo com a pessoa. Tivesse sido candidato presidencial e teria certamente votado nele. Gostei que fosse escolhido para Secretário-Geral da ONU. Foi um grande mérito seu e daqueles que o acompanharam no longo processo de seleção e decisão. Um êxito pessoal depois de um trabalho cuidadoso e bem organizado. Mas a forma como as elites nacionais, os políticos e a generalidade da comunicação social cobriram o assunto mostra bem as limitações culturais do nosso próprio país. E explicam bastante a pobreza do debate intelectual em Portugal que simplesmente não sabe lidar com pensamento critico.
Comecemos pelo revisionismo histórico. Afinal nunca houve pântano nenhum, afinal não houve uma fuga em 2001. E dizer que António Guterres não foi um bom primeiro ministro é agora censurável porque quem é escolhido para Secretário-Geral tem que ser tão bom, mas tão bom, que só pode ter sido um grande primeiro ministro. Pois acho que António Guterres não foi um bom primeiro ministro (com Cavaco Silva, em estilos diferentes, são os quinze anos da oportunidade perdida para reformar as instituições da sociedade portuguesa, tendo ambos alimentado as corporações e os lóbis que hoje impedem qualquer mudança). E a sua escolha para Secretário-Geral da ONU não muda o passado.
Depois temos a canonização. O enjoo da mensagem repetida até à exaustão, a incapacidade de lidar com os inevitáveis defeitos da pessoa e a multiplicação dos adesivos (alguns de última hora). Temos o homem providencial, o homem sem defeitos, o homem que tudo sabe e tudo faz bem, o homem que casou com a Nação, o homem que encarna o génio e o orgulho da raça portuguesa. Mas felizmente António Guterres é bem humano, com qualidades e defeitos, com acertos e erros. A sua elevação ao altar apenas mostra que não aceitamos conviver com a ideia de alguém ter sucesso internacional e, ao mesmo tempo, ser um homem imperfeito. Tem que ser especial. Tem que ser o ungindo. Tem que ser o Homem português. A canonização é apenas uma necessidade de uma sociedade que vive de homem providencial em homem providencial na busca incessante do Prestes João e à espera do regresso de D. Sebastião, esse rei perfeito que foi suficientemente idiota para se perder em Alcácer-Quibir.
Finalmente a intolerância da tolerância. Quem criticou António Guterres ou defendeu que outro candidato/candidata era mais capaz foi imediatamente apelidado de traidor e ostracizado. O pensamento único dos tolerantes que não admitem desvios. Quem não aceita a canonização de António Guterres é anti-português. Quem não segue a cartilha do regime está a mais. Não, não estamos no Estado Novo. Mas há claramente um fascismo moderno de quem não consegue tolerar que outros pensem diferente, de quem rotula de “traidor” porque não admite que em democracia a unanimidade é uma doença. E não, não é assim noutras sociedades. Quando Rodrigo Rato foi escolhido para o FMI (2004) ou Paul Wolfowitz para o Banco Mundial (2005) houve muitas criticas. Ninguém disse que esses espanhóis ou americanos eram traidores ao seu país.
Foi um espetáculo muito triste. 42 depois do 25 de Abril. António Guterres não merecia.
Excelente texto ! Direi mesmo notável, convidando à reflexão sobre o jornalismo praticado em Portugal…
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