ELISABETE SALRETA |
Rufus não aguentava muito mais. Estava num estado em que a mente se confundia. Tão depressa sentia aquela dor que lhe tomava todo o corpo como se mil facas o trespassassem, como no segundo seguinte a sua vida de outrora estava bem à sua frente, numa realidade sem precedentes.
Lembrava-se de o seu primeiro dono o levar a ele e aos irmãos numa caixa de papelão de onde não conseguiam fugir. Escutava os gemidos de angustia da sua mãe e os seus chamamentos em vão. As suplicas para que o homem a deixasse ficar com os filhotes por mais um dia que fosse. Eram tão pequeninos os seus meninos. Tinham tanto ainda para aprender e ela não conseguia imaginar a sua vida sem eles. Sabia que o rabito da sua mãe abanava sem parar e que os seus olhos estavam postos nos do homem numa súplica muda. Mas, nem assim. Foram parar a uma loja de animais onde imensas caras os olharam e os pegaram. Algumas com demasiada força que esmagava e magoava os seus pequeninos corpos e um a um, foram desaparecendo. Ficou apenas ele, exausto, abandonado num sono de bebé. Até que D. Alice chegou com a sua voz meiga e sem fazer muito barulho, enrolou-o numa mantinha quentinha e o levou para casa.
Rufos foi crescendo com todo o mimo e depressa se tornou num belo cão. Seguia a sua humana para todo o lado. Eram conhecidos no bairro, pois eram inseparáveis. Até que D. Alice, aos poucos, deixou de sair de casa. Ele bem a desafiava, bem a chamava perto da porta, mas a idade já não lhe permitia que sair de casa. Rufus foi engordando do tão pouco que se mexia e foi-se tornando num animal triste.
Um dia D. Alice foi fazer parte do céu e Rufus viu-se sozinho. Aquela casa encheu-se de gente e de gritos e ele tentava procurar a sua amiga, olhava os rostos de todos, mas só conseguia um xuto e um raspanete. Tentava ir ao quarto da sua amiga, mas não o deixavam e acabaram por o meter na rua. A casa foi despejada e fechada e ninguém se lembrou mais dele. Foi escorraçado da sua própria casa, aquela que tinha sido a sua única casa e não sabia o porquê. Tinha muitas saudades da sua amiga, e perguntava aos vizinhos com o olhar, mas ninguém lhes respondia. Até aqueles que um dia lhe afagaram as orelhas, agora escorraçavam-no como a um cão sarnento. Eram os seus vizinhos, aqueles a quem um dia lambeu as mãos em sinal de amizade e amor. Agora ninguém lhe valia.
Triste, nada mais lhe restou do que andar aos caixotes do lixo procurando um pouco que fosse. Mais uma vez foi escorraçado e apedrejado.
Seguiu rua abaixo em direção a um pequeno bosque que existia ao final da rua, em busca de um qualquer abrigo junto a uma arvore maior, naquela noite que se tornava cada vez mais fria. Avistou uns faróis que se dirigiam para ele a grande velocidade e encostou-se ao muro o mais que conseguiu. No ultimo segundo, bem antes do embate, conseguiu ver os olhos daquele humano cheios de ódio e fúria. Achou que os conhecia, mas não se lembrou de onde. Tudo ao seu redor se apagou por segundos e o que ficou foi uma dor que lhe tomou todo o corpo. Mal se conseguia mexer e cada vez que o tentava, a dor tornava-se ainda menos suportável. Mesmo assim, conseguiu arrastar-se para a berma da estrada que ladeava o tal bosque e ali ficou. Muitos passaram por ele, mesmo a pé. Tentou abanar o seu rabo em busca de conforto, mas este não se mexia mais. Suplicou com o olhar, mas os humanos sorriam e continuavam o seu caminho. Sentiu dor, fome e sede. A cada minuto que passava a fome e a sede iam-se tornando menos suportáveis. Hoje, a sua mente estava negra. Não sabia há quantos dias estava ali, mas sabia que hoje estava fraco demais até para sentir os raios de sol tão envergonhados.
Mais de 70% dos animais atropelados morrem de fome, sede e dor. Não morrem de imediato. Estão dias numa perfeita agonia e em choque. Por vezes parecem mortos, apenas não conseguem mexer-se.
D. Alice, com toda a sua bondade, adotou um cão bebé. Não se lembrou que não estaria cá para lhe valer durante toda a sua vida. Talvez se Rufus fosse um sénior, teria feito companhia à senhora e talvez a sua vida terminasse bem antes da dela. E assim, ela continuaria a ter feito uma boa acção. Não nos podemos esquecer nunca, de que quando adotamos um animal, dependendo da sua raça, ele pode durar até ou mais de 20 anos. Você vai estar cá quando ele precisar de si? Pela lei da vida, em termos de idade, vai? Porque não adotar um sénior? Talvez esteja mais de acordo com a sua mobilidade.
E não se esqueça, garanta caso lhe falte. Garanta um amigo que o respeite para quando você cá não estiver!
Mais do que um divórcio forçado, este profundo texto é um relato realista e revelador de uma cruel e triste verdade actual!
ResponderEliminarPara ler e reler sobre mais um dia-a-dia sobre os nossos amigos!
Parabéns à poetisa Elisabete Salreta!