sexta-feira, 30 de setembro de 2016

CONVERSAS PRIVADAS COM... VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

MANUELA VIEIRA DA SILVA
Relatos de acontecimentos jorrados em jornais em absorvente papel pardo, e nas notícias da Tv com imagens e pormenores da vida alheia, ocupam o espaço deixado vazio pela indiferença da própria vida, e pelos tantos afazeres, repetidas rotinas, teimosas algumas, que fazem o tempo parar para não pensar. Chuva miudinha calada desliza húmida na alma, através das paredes da razão, pintadas de bolor com aromas de malícia e perfídia. As partículas no tempo suspensas, aguardando a brisa, um sopro de deslocação que as levasse ao vento da clareza, decompuseram-se em notas compostas de múltiplas variações e o tempo da brisa jamais voltou. Tantas coisas que deveriam ter sido ditas, partilhadas, adivinhadas, e protegidas na brisa quente do amor, no íntimo, seguro e privado aconchego da família.

O centro do mundo está em cada um, no centro das emoções, no centro dos desejos, no centro da esperança de uma vida melhor, de ser melhor que o alheio, de ter mais e mais, tornando-se num infernal, obsessivo e único objectivo de vida. Tudo à volta gira em velocidade, sem a mínima percepção do invisível e do inaudível, porque não se vê, não se ouve, mas existe. E o que se vê existe porque lhe dão vida, existe pela simples necessidade de existir para alimentar, preencher o vazio crónico que está cheio de coisas vazias, que, por serem vazias, constantemente são substituídas por outras também vazias, e assim sucessivamente. Ocupam o espaço da razão, do entendimento, ocupam o espaço do afecto, da compreensão e do discernimento. Tudo isto impede o crescimento, a maturidade de homens e mulheres que hão-de gerar outros homens e outras mulheres.

Dou-me ao direito de reclamar a liberdade de me debruçar sobre este tão delicado assunto: a violência doméstica. Sempre houve, dizem uns, mas ficava dentro das portas e não se sabia. E quem o sabia, dizia: «Entre homem e mulher, não metas a colher.» E em silêncio, a mulher sofria, e os filhos assistiam. Estes filhos são hoje homens e mulheres que sofrem, perdidos no álcool, nas drogas, na luta da vida inóspita da sobrevivência entre o ser e o ter, entre o possuir e o viver. Mas também há os casos em que não presenciaram violência no seio familiar, onde, pelo contrário, houve educação, com mais ou menos abundância de bens materiais, onde nada ou quase nada faltou, ou ainda, os casos em que houve educação moral e/ou católica, embora vivendo numa situação remediada ou pobre. A violência doméstica percorre todos os extratos sociais e económicos. Será um absurdo social? 

Penso que, antigamente, estas situações surgiam, regra geral, devido ao ciúme alimentado pelo álcool, às traições, ou à falta de dinheiro. A sociedade era mais fechada, as mulheres, mais recatadas, e os homens assumiam o papel de patriarca, de mentalidade machista, cujo dever era dar segurança e alimento. E a vergonha aos olhos dos outros instalava-se, porque havia valores a proteger.

Hoje, os motivos serão os mesmos, mas há diferenças: hoje há mais liberdade e mais conhecimento, há o divórcio, «namoros» precoces de vida íntima em que tudo é aceitável e «normal». Rapazes e raparigas estudam até ao nível superior de forma igualitária, e até têm educação sexual. Vão ter preservativos nas escolas a partir dos 14 anos… Onde posso, então, encontrar semelhanças? Fico perplexa perante o número de mulheres assassinadas por violência doméstica, todos os anos a estatística a aumentar.

Muitas áreas sociais, familiares e políticas poderão estar envolvidas na causa e na solução deste problema, que não serão aqui esmiuçadas. Destaco apenas a mentalidade e a forma como estamos a criar os homens e as mulheres que constituem a sociedade. Se não é a falta de conhecimento, se não é a falta de liberdade, então só pode ser a falta de crescimento e de maturidade, que, prova-se, não é através do conhecimento e da liberdade que se consegue. Onde se aprende? Uma questão à qual muitos entendidos já deram resposta quanto à educação, uns dizem que é na escola, outros, que é no seio familiar, e ainda outros, que é de ambos os lados em simultâneo. Não cabe ao professor de Física ensinar valores sociais e morais, quanto a mim, nem qualquer outro professor de outras disciplinas, porque no meio de tantas disciplinas e cadeiras falta aquela que ensina a viver em sociedade. Mas também não é o viver em sociedade que está em causa, o que está em causa é a vida íntima entre casais, nas suas casas, ou entre namorados. 

Choca-me saber que meninos e meninas com 14 ou 15 anos andam em discotecas até às 6 da manhã. Choca-me saber que vão ser distrubuídos preservativos nas escolas para meninos e meninas a partir dos 14 anos. Qual é a moral? Onde querem os pais que os seus filhos cheguem ao autorizarem essas saídas? Onde quer o Estado chegar ao distribuir os preservativos? – Eles fazem na mesma, o melhor é protegerem-se para não engravidarem. – Isto é inverter totalmente a educação sexual. A educação sexual não pode ser dada sem as componentes de educação dos sentimentos, dos direitos e deveres, da educação na gestão emocional. As vontades gerem-se, controlam-se. O cérebro desenvolve-se na acção e no pensamento. Não é preciso fazer para conhecer. Antes de uma acção ser iniciada, no nosso íntimo, sabemos as suas consequências, em geral, positivas ou negativas. Se eu roubar, sei que me arrisco a ser apanhada. Porque é que a consciência demora a travar as acções? Poderá haver várias respostas, ou talvez apenas três: uma, ser débil mental, ou sofrer problemas do foro psíquico; outra, não ter qualquer valor de respeito por nada, nem por ninguém, por defeito; a última, estar sob o efeito do álcool ou de estupefacientes.

Em que sociedade vivemos nós? Em que seres humanos nos estamos a transformar, se «por dá cá aquela palha» recorremos ao álcool para ganhar coragem, ou para diminuir a tensão emocional? E em vez de termos a razão a funcionar quando ela mais é necessária, perdemos o sentido do outro, mergulhados num egocentrismo doentio. Os jovens de hoje (que vai até aos 35 anos, dizem) nasceram no pós-25 de Abril, com a adolescência nos anos 90, no boom económico em Portugal, em que os pais tudo davam aos filhos. Estes, por sua vez, cresceram com as vontades satisfeitas sem grande esforço, ao mesmo tempo que a revolução sexual se inicia de uma forma surpreendentemente indisciplinada, com todos os recursos visuais à disposição, sem qualquer acompanhamento. Não foram formados seres maduros para a vida, com a consciência aberta, preparados para as dificuldades, muito menos para uma recusa de um namorado ou namorada; para a traição, porque hoje a traição não tem o mesmo nome para quem trai, mas tem para quem é traído. Os sentimentos não são prioridade, basta uma paixoneta, ou uma atracção física superficial, para se assumir uma relação de casal, sem medir as consequências, sem medir o grau de afectos, sem deixar amadurecer coisa nenhuma. Vivem ao sabor do vento, ao que lhes dá prazer, ou adrenalina, perdendo-se na primeira dificuldade. 



Julgar depreende-se e está subjacente sentenciar, condenar outro ser humano a ser outro, que não ele próprio, perdendo a sua autodeterminação individual, e dando lugar ao aumento das diferenças. Dar ou tirar o direito à liberdade do outro é condenar a uma prisão sem ferros, é ficar refém de desejos, caprichos de outros, que, por sua vez, estão reféns de si próprios. A dignidade humana começa na acção de cada um pela sua própria libertação.

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