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HÉLDER BARROS |
Bem sei que o termo feiticeira fica muito melhor, sendo até literáriamente mais sedutor, mas nas nossas aldeias de Entre Douro e Minho, pelos anos oitenta e noventa do século passado, o termo era mesmo: “bruxa”. Em quase todas as aldeias, havia uma mulher, predominantemente, estes seres estranhos, com poderes do Além, eram do sexo feminino e de meia idade, com um putativo dom: tinham a “morada aberta”, como se costumava dizer. Qualquer mal de amor, de dinheiro, invejas, doenças, era passível de ser resolvido por Lina, a bruxa local. Estes seres que vestiam o papel destas personagens, tinham características muito próprias, idiossincrasias singulares. Deveriam, preferencialmente, ser pessoas muito curiosas, conhecer muita gente, ter uma vasta rede de contatos, de relacionamento fácil e espontâneo. Existia algo de comercial naquele mister, como se costuma dizer, era preciso muita lábia, dotes quase que de encenação teatral, para compor tão complexa figura.
Certo dia, um lavrador da freguesia começou a ter problemas com o seu gado, que ele tão zelosamente cuidava e estimava. Começou por lhe morrer o porco de criação, um mês depois morreu uma vaca leiteira bastante produtiva, passado uma semana deu uma desinteria tal aos coelhos, que foram cerca de vinte à vida. A seguir foram os frangos, galos e galinhas que começaram a tombar como tordos. Tónio das Bouças, como era conhecido localmente, andava triste como a noite, muito abatido e calado. Começou a ver a sua vida a andar para trás, o gado era muito importante para a sua economia familiar, fundamental no sustento da sua família, que estranha maldição o teria atingido, dizia para os seus botões; a sua vida ia de mal a pior. Tónio, não tinha motivos para sorrir, nem para andar de cabeça levantada, a sua vida estava na lama, num estado de desesperança tal que, nada o conseguia animar.
Num dado domingo, foi à missa e todos os amigos lavradores o tentaram animar, pois já constava na freguesia o infortúnio que tinha assolado a vida de Tónio. Um primo que estava mais afastado do ajuntamento, o Zé do Alto Seco, chamou-o à parte onde se encontrava também a sua senhora: “Tónio tu estás com mal de inveja, alguém te deitou olho gordo, acredita no que te digo”. Então, num tom muito sério, a mulher, a Milinha do Alto Seco, acrescentou: “Oh primo você não devia estar a partilhar o seu azar com essa malta, sabe lá se não foi um deles que lhe rogou a praga”. O Tónio continuou a escutar, entre um sentimento de espanto, de mistério e de medo e, de repente, retorquiu: “Oh prima mas isso é possível, assim só com um olhar, dar cabo da vida de um homem…”. A Milinha riu-se e desafiou-o logo de seguida: “Nós vamos levá-lo a um sítio onde vai ficar a saber tudo e como vai poder resolver isso, são coisas do tinhoso”, finalizou ela, a inveja aqui é muita. Assim depois de combinarem tudo, foram, passados três dias a um local ermo na freguesia vizinha, a casa de Adelina a Bruxa, onde chegaram já de noite, era inverno e escuro, um local mesmo inóspito e assustador.
Não foram o primeiro casal a chegar, aguardaram numa sala escura, com pouca luz, tal como a casa toda, esperando com angustia a sua vez. À frente dele estava um casal com uma filha adolescente, com umas grandes olheiras na sua cara pálida, como as casas caiadas, que tinha supostamente, incorporado o demo, segundo os pais estavam a contar a outro casal. Tinha ataques brutais, convulsões, esperneava-se, urinava-se, vomitava, até a sua voz mudar e começar o tinhoso a falar por ela. Era verdadeiramente possuída por um espírito do mal, que incorporava naquele ser frágil, manifestando toda a sua fúria e maldade naquela rapariga escanzelada e enfraquecida. Os pais correram os médicos todos, foi-lhe diagnosticada uma epilepsia. Mas com os medicamentos foi sempre piorando, só a Adelina lhe conseguiu dar algum sossego, com as suas sessões de pseudo-espiritismo. No atendimento a Tónio, na parte da tal incorporação de espírito, a Adelina corada e a falar com uma voz estranha concluiu que um vizinho o invejava muito e que teria que realizar determinados procedimentos, para reverter a sua sorte. Em transe, Adelina repetiu muitas vezes a seguinte lenga lenga: “vai-te espírito da inveja, nas alminhas arderá o teu mal para que se veja”.
Assim, o Tónio teve que levar um coração de cada tipo de animal que morreu e colocá-los com velas a arder, nas alminhas da estrada nova. Segundo Arminda, tal iria livrar o Tónio da má sorte e passar a maldição para quem a lançou previamente. Era noite escura, o Tónio saiu com as amostras de carne e levou-as às alminhas, colocando as velas a arder. Um espetáculo tenebroso e diabólico que assustou os poucos vizinhos e as pessoas que por ali passaram altas horas da madrugada, que conseguiam assistir aquele fogo intrigante e sinistro, uma cena do Inferno, dantesca. O lume iluminava a cruz das alminhas, provocando um efeito bastante perturbador. Passaram uns meses e a vida de Tónio regressou, paulatinamente, à normalidade, os seus animais deixaram de morrer e a sua vida começou a prosperar como nunca… houve um lavrador vizinho que, ao que constou na aldeia, começou a ter problemas com o seu gado, assim de repente… do nada!
Foi conhecido também, o caso de uma jovem que, ao que parece, gostava muito de um rapaz e que estariam já até com planos de constituir família, de se casarem. Inopinadamente, o rapaz deixou a rapariga e fugiu com uma amiga da namorada, a Rita da Eira Velha. Os primeiros eram a Teresa do Alto e o Joaquim da Presa. A Teresa entrou num estado depressivo de tal forma que não falava com ninguém, não conseguia dormir, não tocava em comida e passava os dias prostrada numa tristeza que a invadiu, até às profundezas da sua alma. Os seus pais, o Manel e a Maria do Alto, não sabiam o que mais fazer para aliviar o sofrimento da sua filha, pois esta não respondia a qualquer estimulo exterior. Teresa passou a viver num estado de torpor e com uma astenia angustiante. Parecia que viver já não fazia sentido, morrer seria a única saída deste malogro em que a sua vida se tornou, desaparecer do mundo dos vivos era quase que uma libertação para aquela Alma sofredora.
Os seus pais, muito católicos, estavam relutantes em socorrerem-se dos serviços espirituais de Arminda, mas perante o crescente definhar da sua filha, foram à casa desta, numa tentativa desesperada de resolverem os seus problemas. Adelina, ouviu a história e rapidamente concluiu que fizeram um serviço ao Joaquim, de tal forma que este transferiu todo o interesse e amor que tinha por Teresa, para a Rita de Eira Velha. Entrou novamente em transe e mudando o seu registo de voz, para algo mais diabólico, repetiu várias vezes a seguinte cantilena: “Mau serviço embruxado carrega o coração do Quim para este lado!”. A tarefa a desenvolver a seguir seria arranjar um coração de um jovem recentemente morto, espetar-lhe vários alfinetes e colocá-lo em frente ao quarto da Rita de Eira Velha, durante uma noite, com velas a arder rodeando o sinistro objeto de uma espécie de ritual quase… satánico. Decorreu um mês, morre na aldeia um rapaz de vinte e poucos anos que teve a infelicidade de cair numa obra onde trabalhava, e, passados poucos dias das suas cerimónias fúnebres, o Manuel e a Maria do Alto, pediram ajuda a alguns familiares para profanar e o túmulo e retirar o coração ao morto. Num espetáculo digno de um filme de terror, lá foram com candeias iluminadas, no escuro da noite, começaram a cavar e, finalmente, retiraram o coração ao rapaz. No entanto, na penumbra da noite, facilmente foram avistados pelos casais mais próximos, que vieram com enxadas e forquilhas e correram em direção aos profanadores e lhes atiraram pedras, agrediram à varada e sacholada. O coração foi recuperado e os primeiros, além de ficarem maltratados, foram censurados, enxovalhados e humilhados por toda a freguesia, durante muitos anos. A Teresa continuou doente até morrer precocemente, enforcou-se na adega dos pais, provavelmente com uma depressão que nunca foi diagnosticada, quanto mais tratada… Esta realidade foi muito comum nos meios rurais, nas décadas de oitenta e noventa do século passado. Era normal assistir a grandes concentrações de automóveis em frente das casas destas curandeiras rurais, foi uma altura de grande atividade, não diria espiritual, porque isso é uma verdadeira ofensa ao verdadeiro Espiritismo, que respeito; mas antes de charlatanice espiritual… fizeram-se autenticas fortunas, à custa do infortúnio de muita gente humilde e de boa fé. E foi um fenómeno verdadeiramente transversal e interclassista, pois atravessava todas as classes sociais. Para cumulo, alguns padres da igreja católica entravam em encenações de cerimoniais de falsos exorcismos, quando as pessoas estavam era gravemente doentes e frágeis a nível mental. Afinal, era fácil ver um demónio num doente com convulsões e ataques de pânico. Perguntar a um esquizofrénico que, não se tratava, se falava com o diabo, ou com os demónios, era muito provável ter um feedback positivo. Achava piada, designadamente, quando ouvia dizer que uma verdadeira bruxa não levava dinheiro, dado que, no final, contas bem feitas, as pessoas deixavam muitas centenas de contos em oferendas e donativos monetários, ficando, muitas vezes, completamente arruinadas… no entanto, ainda bem que, por crença ou pelos mistérios insondáveis da nossa mente, muita gente se sentiu curada por estes processos, no mínimo, de dúbia intenção…»