quinta-feira, 20 de abril de 2017

O SOM DO SILÊNCIO

ANABELA BORGES
Tenho-me encontrado – num qualquer lugar que não sei bem explicar – cada vez mais próxima e cativa do silêncio.

“Estou sentada no degrau da frente da minha casinha, com uma chávena de café na mão, a olhar para baixo, para o vale, para a minha extraordinária paisagem de nada. É maravilhosa.”*

Estas palavras de Sara Maitland bem podiam ter sido escritas por mim, de tal forma se encaixam na minha forma de estar face ao estado de espírito que o sossego do silêncio representa para mim.

Sempre tive uma vida bastante ruidosa.

A minha vida tem sido rodeada de muita gente, logo uma vida cheia de ruído.

Não posso (nunca poderei) dizer que é mau viver como tenho vivido – isso seria apagar quase por completo a minha existência, negar o que sou. Alias, pelo contrário, essa vida rodeada de gente e de ruído que tenho tido o privilégio de viver é que tem feito de mim o que hoje sou.

Sou oriunda de uma família numerosa. Sempre fomos muitos nas horas das refeições, ao ponto de, muitas vezes, não cabermos todos à mesa. Sempre fomos muito numerosos para as reduzidas divisões da casa, a ponto de termos de partilhá-las ao longo de cada dia, inúmeras vezes ao dia. Posso dizer que raramente estava sozinha num espaço da casa, se exceptuarmos a casa-de-banho. Mas também estou consciente de que esse facto foi um dos grandes responsáveis pela facilidade com que aprendi a partilhar. Quando se pertence a uma família numerosa, partilhar é um imperativo.

Depois, naturalmente, veio a vida de estudante, juventude e adolescência, em plenos pulmões das décadas de 80 e 90 do século XX, épocas em que o mais importante era fazer ruído. Sair. Dar nas vistas. Não ficar em casa. Fazer de tudo para se ser notado.

Nesse tempo, eram de particular importância, sobretudo, as saídas em grupo, as imensas horas passadas em bares e discotecas com a música a ressoar nos mais elevados decibéis, o gosto pelas motorizadas, enfim, todo um conjunto de actividades a concorrer grandemente para o aumento do ruído na minha dócil juventude.

E, mais tarde ainda, haveria de escolher para profissão a vida académica. Haverá ambiente mais ruidoso do que a escola?

Tenho, portanto, tido uma vida muito ausente de silêncio.

Nesta actividade que desenvolvo em paralelo – a escrita – enganadoramente sou levada a pensar que estou imbuída no mais profundo silêncio. Só que não. O escritor tem por companhia um grande inimigo do silêncio: as palavras. Essas não dão sossego ao escritor. Elas são ruído constante na mente do escritor, perseguindo-o. Não se calam.

Como fazer, então, para me sentir em silêncio?

Estar em silêncio, para mim, significa estar num estado interior maior, que é como descobrir toda uma nova dimensão, em que a mente se encontra na mais absoluta paz. Estar em silêncio não significa, necessariamente, estar em solidão, viver em solidão. É possível, pois, estar em silêncio e estar só, mesmo estando rodeado de pessoas.

Quando era pequena, quando me via sufocada pelo ruído, isolava-me um pouco. Tentava recorrer a um recanto da casa ou do jardim, tentava adentrar-me um pouco no monte à beira de casa, para tentar ouvir-me, para ouvir o som da minha mente. E quando não fosse possível, tentava isolar-me através do pensamento. Fazia-o, muitas vezes, para não enlouquecer. Ainda hoje faço isso.

É preciso saber ouvir o som do silêncio. É preciso, como diz a canção, estar só por entre a multidão: “E na luz nua eu avistei dez mil pessoas, talvez mais. Pessoas conversando sem falar; pessoas ouvindo sem escutar. […] E ninguém ousou perturbar o som do silêncio”.**

- Escutar o som do silêncio. Mas isso não é algo que se saiba fazer desde o início. É algo que se procura e se treina.

Quando atingi os 15 anos de docência, estava, como será fácil de compreender, farta de ter barulho à minha volta. Estava rodeada de barulho, e isso fazia-me saturada. O nível de cansaço era tanto, que quase já não sabia utilizar as técnicas que tanto tinha treinado em pequena para me defender do ruído, em busca do silêncio. Quase me esquecia de aplicar essas técnicas que eu mesma, em meio de defesa, tinha inventado.

A sociedade actual está rodeada de ruído. O som é ruído. A imagem é ruído. A informação em excesso é ruído.

Hoje, mais do que nunca, tenho necessidade de procurar formas de estar em silêncio. Cada vez mais tenho necessidade de me encontrar comigo. E, saibam, pode ser assustador ouvir o que o mais íntimo de nós tem para dizer. E é um imenso trabalho, porque requer concentração e uma capacidade que muitos nunca desenvolveram e talvez vivam uma vida sem a desenvolverem: a contemplação.


*O LIVRO DO SILÊNCIO (excerto), de Sara Maitland, 2008.

**“The Sound Of Silence”, canção (excerto), Simon & Garfunkel, 1964.

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