quinta-feira, 27 de abril de 2017

PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO

ARTUR COIMBRA
Falemos da Páscoa da Ressurreição.

A Páscoa acontece apenas uma vez por ano e daí a sua relevância como tempo de enquadramento para um ressurgir individual e colectivo, sempre que a Primavera aparece rodeada dos seus cheiros e das suas cores.

A Páscoa já não tem hoje, claramente, a importância social, cívica e até religiosa que a caracterizava há um par de décadas. Não tenho a mínima dúvida a esse respeito.

Havia dantes um ritual, um cerimonial, uma tradição e uma observância da data que nitidamente se perderam com o rodar dos anos, e nem foram assim tantos. Porventura, tal desvalorização da data estará relacionada com a crescente secularização da vida colectiva, que nos leva ao desviar das normas e dos preceitos que os nossos pais tanto respeitavam e acarinhavam, pelo menos em espaço rural. 

Recordo-me das tradições preparatórias do grande dia. Desde logo, a praxe da confissão, um rito a que não se podia fugir, pelo menos quando se não podia. Confessar-se ao menos uma vez cada ano era como que uma imposição ritualística à consciência religiosa dos crentes, mesmo dos menos participantes das coisas da Igreja. Era como que o mínimo dos mínimos para uma pessoa poder ser considerada católica, apostólica, romana. As paróquias estabeleciam dias e horas para “o confesso”, uma ou duas semanas antes, convidando párocos das vizinhanças para reforçarem o serviço, pelo sempre previsível acréscimo de solicitações por parte de quem no resto do ano se vinha desleixando das suas obrigações religiosas.

Depois, o ritual da “limpeza de Páscoa”. Que grande azáfama explodia por essas aldeias além quando a Páscoa se aproximava. Casas que ao longo do ano mal viam uma vassoura ou um naco de sabão, por essa altura sofriam autênticas “barrelas”, como então se dizia, para que tudo brilhasse de asseio e beleza quando o compasso viesse de visita à família. Ninguém escapava a essa preocupação anual. Nem pobres nem ricos.

Tal como a confissão, era absolutamente imperioso que o mais pequeno casebre ou a mais imponente mansão fossem objecto de uma operação de limpeza que os tornasse dignos da visita de Cristo Ressuscitado.

E havia ainda um outro aspecto curioso de que muitos se lembrarão, certamente. Às 15h00 de Sexta-feira Santa, a vida como que parava ou se suspendia, em sinal de luto. Morria Jesus, morria a vida normal, por um dia e meio… A partir dessa hora e até às 24h00 de sábado, a rádio apenas passava música clássica, mais ou menos de cariz fúnebre. E a televisão (RTP, apenas, na altura, como bem se sabe…) não andava longe desse paradigma. Só no domingo da Ressurreição, a alegria voltava e com ela a normalidade que se havia interrompido dois dias antes. Hoje, este assunto não passará de uma nota de rodapé no anedotário da quadra…

E o domingo de Páscoa era dia de festança. Os homens e as mulheres aperaltavam-se nos seus fatos mais valiosos e rumavam, manhã cedo, à missa da igreja matriz. Nesse dia não havia cansaço nem dor de costela que apegasse os paroquianos à cama. Páscoa era Páscoa. Ponto final.

Depois, ainda mal clareara o dia, já os foguetes estralejavam abundantemente nos céus a sinalizar aos fregueses que o compasso estava a sair para visitar todas as casas da aldeia, segundo um percurso previamente divulgado. Capitaneada invariavelmente pelo pároco, a comitiva integrava os homens bons das aldeias, geralmente os mais respeitados, que empunhavam a cruz, recolhiam as ofertas e cumprimentavam amigavelmente a família aquando da visita. A campainha estava destinada às crianças mais afoitas, que dividiam entre si os sacos para recolher as amêndoas, sobretudo das famílias mais abastadas.

O cortejo rabiava depois de casa em casa, calcando os tricotados tapetes de flores que da rua conduziam à porta da sala onde se recebia o Senhor. A cerimónia do beijar da cruz tinha as suas etiquetas. Primeiramente, beijava-a o “chefe da família” e depois, em sequência, a mulher, os filhos, escalonados pela idade, e a restante família e criadagem, se a houvesse, bem como alguns amigos. Havia gente que fazia questão de beijar a mesmíssima cruz em diferentes casas de familiares ou amigos da aldeia.

Não há dúvida que era cansativo para os integrantes da comitiva pascal percorrerem dezenas de lugares, entrarem em centenas de casas, cumprimentarem inúmeras pessoas, serem pressionados a beber um cálice de Porto, ou de champanhe, se de manhã, ou um vinho verde, devidamente acompanhados, se de tarde, porque nesse dia não havia crise ou escassez que se impusessem à generosidade e à vontade de dar o melhor que cada um tinha à comitiva que levava a cada família o Cristo Ressuscitado. 

Hoje em dia, a tradição já não tem a força que tinha há anos atrás. Sem qualquer dúvida. O compasso pascal deixou de ser liderado por clérigos, por míngua destes, sendo constituído na grande maioria dos casos por leigos. A maior parte das portas deixou de se abrir à comitiva, pelos motivos mais diversos. E imensa gente passou, nos últimos anos, a sair da terra natal ou do local de residência, para destinos turísticos, numas “mini-férias” que são hoje valorizadas, inversamente à consideração que tem pelo território das convicções religiosas.

O mundo mudou, irrefutavelmente, descristianizou-se e o fenómeno da Páscoa sofreu essa profunda metamorfose que o transformou numa tradição com expressão cada vez mais residual. Hoje a Páscoa é um quando muito fim-de-semana prolongado que sabe muito bem para dar uma volta por aí e repousar do estresse dos dias chuvosos do Inverno, enquanto o Verão não chega. 

É também uma representação teatralizada para consumo turístico, como acontece com a Semana Santa em Braga, por exemplo, embora, obviamente, os integrantes das procissões o façam no maior dos fervores.



Mas o sentimento generalizado da importância da Páscoa desapareceu, não passando por estes dias de uma evocação mais ou menos saudosa para quem estimava e venerava os rituais que constituíam a sua identidade anual!…

Sem comentários:

Enviar um comentário