sábado, 18 de março de 2017

ROMARIAS QUARESMAIS: UMA VIAGEM DE FÉ

«OS ROMEIROS»
CRÓNICA DE CARLA LIMA
Depois do enterro do Entrudo, vem a Quaresma e com ela começam as Romarias na Ilha de São Miguel, principalmente, mas que já começa a acontecer em outras ilhas do Arquipélago dos Açores. A origem das Romarias vem do tempo do tremor de terra em Vila Franca, em 22 de Outubro de 1522, que provocou muita destruição, dando origem a procissões realizadas todas as quartas-feiras, à noite ou de madrugada para a Ermida de Nossa Senhora do Rosário construída naquela localidade em memória da catástrofe, sendo por isso a devoção à Nossa Senhora do Rosário o fundamento principal destas procissões, em que se pedia a sua protecção.

Obedecendo à tradição, as romarias são compostas unicamente por homens, que durante sete dias percorrerão a pé todas as localidades da Ilha, por vezes através de maus caminhos, por devoção, cumprimento de promessas, reabilitação ou por motivos de consciência, parando nas Igrejas e Ermidas em que se venere Nossa Senhora, para fazerem as suas orações, e oferecerem os seus sacrifícios, que não são poucos, em obediência, em cansaço, em desconfortos, ao sol, à chuva e ao vento.

Até aos nossos dias, as romarias e os estatutos dos romeiros sofreram muitas alterações, corrigindo situações e proibindo alguns abusos, mas o essencial é que mesmo com alterações, continua a ser uma tradição, cada vez com mais adesão popular. Muitos emigrantes vêm de propósito do Canadá e da América para participar nas romarias.

Depois de meses de encontros e de preparação chega o dia da partida. Com o cajado na mão, saem da Igreja da sua localidade, cantando em altas vozes a Avé Maria, e lá vão os Romeiros em busca de todas as Igrejas e Ermidas da Ilha onde haja uma invocação à Virgem.

Pernoitam em casa das pessoas que os queiram receber. É tradição dos proprietários proporcionar-lhes banho, comida e dormida em camas lavadas e até alguns oferecem-se para lavar-lhes os pés como sinal de respeito.

Sete dias passados, eis que de novo os Romeiros entram na sua Igreja Paroquial e onde se despedem uns dos outros, findando assim uma jornada de introspecção e penitência que os marcará para a vida.

Cada rancho tem um Mestre. O Mestre é a primeira de todas as figuras do Rancho. É ele quem preside ao auto processional, quem dirige as orações, quem oferece, quem suplica a Deus e à Virgem as inúmeras preces de que vem incumbido. Ao Mestre deve-se obediência, a quem antigamente se beijava a mão de manhã e à noite, e é ele quem dá o sinal de descanso e a ordem para se recomeçarem as preces. O seu lugar é no fim do Rancho, a meio das alas que os Romeiros formam pela estrada fora. É o primeiro que se ajoelha, é o último que à noite se recolhe a descansar, é o primeiro que na madrugada seguinte se apresenta para a nova caminhada. É ele quem pede ao anoitecer, na freguesia ou Vila onde chegam, pousada para os Romeiros, é o que agradece os favores recebidos, é o responsável por qualquer anormalidade que se dê entre os Romeiros, e é o ultimo a receber favores ou regalias.

Hierarquicamente abaixo do Mestre, há o Procurador das Almas, que tem o seu lugar a meio do Rancho, porque é ele que pela estrada fora dirige as preces e pede a aplicação delas, é quem recebe durante o trajecto os pedidos de diferentes pessoas, para orações aplicadas a diversas intenções; daí o nome de Procurador, e das Almas porque de quando em quando, manda todo o Rancho rezar por elas.

A terceira figura do Rancho é o Guia, que vai à frente de toda a Romaria, porque é o mais conhecedor dos caminhos, das veredas e das ribanceiras, dos mais curtos atalhos por onde todo o Rancho terá de passar para chegar até todas as Ermidas e Igrejas espalhadas pela Ilha. Costuma ser uma pessoa mais velha, geralmente batida em longos anos naquela caminhada.

Nenhuma destas figuras usa porém algo que as diferencie dos outros. O traje é igual para todos, consistindo geralmente num colorido lenço regional atado ao pescoço, num xaile, e uma cevadeira às costas, presa por uns cordéis aos ombros, cajado ou bordão numa mão e um Rosário pendurado na outra.

A comida, que para alguns pouco mais varia do que pão e queijo, levam-na na cevadeira, e dá até meia jornada. As famílias vão ao seu encontro entregar-lhes a comida para o resto da viagem.

Não só pela sua persistência ao longo dos séculos, mas também pela originalidade de certos elementos que lhe são inerentes, é um fenómeno etnográfico de grande interesse.

Muita coisa se pode dizer sobre os romeiros. Mas só se percebe e sente-se o que é um romeiro, sendo crente ou não, quando passamos por um rancho e ouvimos o entoar das suas preces. Quase que conseguimos sentir as suas dores e a sua fé e por uns breves momentos aqueles homens com os seus cânticos e os seus pés feridos fazem-nos sentir que ainda há esperança…

“A verdadeira viagem da descoberta consiste não em buscar novas paisagens, mas em ter olhos novos.”
Marcel Proust

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