REGINA SARDOEIRA |
Adultério. Adulterar. Palavras afins.
E se, quanto à primeira, as conotações se prendem, quase exclusivamente, com o jogo de traições perpetrados pelos pares de um casal humano - se é que a palavra "jogo" é legítima, neste contexto - adulterar adquire um sentido mais amplo.
Sabemos que o acto de adulterar é comum (e frequente, se quisermos.) . E é um acto humano.
Os homens adulteram o ambiente, a alimentação, as espécies vegetais e animais, os espaços naturais e construídos, a civilização, a sociedade, adulteram-se a si mesmos e aos que os rodeiam, adulteram reputações e amizades.. O homem parece ser, entre todas as espécies, o adulterador por excelência.
Sendo assim, falar de adultério, aludindo à traição entre um par que se liga com promessas, sejam institucionais, religiosas ou tácitas - porque o sentimento de fidelidade, na união, encontra legitimidade seja qual for a forma usada para firmá -lo - parece ser o corolário lógico de todas as outras adulterações.
Se o homem não hesita em poluir o seu habitat, adulterando-o, dando ao mundo que habita uma feição inumana ou artificial (no pior sentido, já que afecta todas as espécies) e condenando-se a si mesmo, enquanto indivíduo, porque haveria de guardar fidelidade a uma pessoa, mesmo que a união tenha decorrido de um pacto voluntário?
Não pretendi, de modo nenhum, justificar, deste modo, o adultério. Creio que, desde o momento em que a decisão de unir-se a outrem é uma necessidade de alguém, se, um perante o outro e muitas vezes (a maior parte?) perante uma comunidade inteira, optam por criar uma parceria monogâmica e juram isso mesmo, nada justifica, depois, toda a gama de traições - quer dizer, o adultério.
Porém, se, racionalmente, é relativamente fácil sermos radicais, quanto à necessidade de respeitar o que foi assumido como laço vitalício, em termos emocionais ou meramente instintivos, a questão não é linear.
Adulterar, já o vimos, é uma das vocações humanas; o adultério, como derivação semântica do conceito, assume-se, igualmente, como tal.
O homem pode ter, em determinado momento da sua existência, o desejo de se dedicar exclusivamente a outro humano, num acto de compromisso. Pode, inclusivamente, afirmar com sinceridade que irá honrar os votos - "até que a morte os separe" . Mas a verdade é que, como sucede em todas as promessas, o acto de prometer avança no tempo, instaura -se no futuro.
Quem, com sensatez, pode decidir sobre o futuro?
Sem dúvida que o fazemos constantemente. Toda a nossa existência de humanos repousa no projecto, no que há -de vir, seja amanhã, seja daqui a muitos anos. Vivemos lançados no tempo, voltados para o momento seguinte e, desse modo, sendo incapazes de fruir o instante. Ou talvez que o instante contenha, desde logo, o futuro e o passado, afinal, todo o tempo, tal como nos habituamos a considerá -lo. E assim, prometer, num certo momento, fidelidade exclusiva a uma pessoa - ou a uma ideia, ou a uma causa - implica uma permanência na linha do tempo no qual estamos inscritos com as nossas promessas.
Estas situações ocorrem porque somos racionais; e, sendo-o, ousamos comprometer -nos a longo prazo, com alguém a quem juramos fidelidade permanente. A racionalidade, que para nós reivindicamos como um atributo da espécie, faz-nos supor que controlamos o que, em simultâneo, também nos constitui - a saber, os ímpetos animais e os instintos. Milénios de evolução e de culto da consciência racional, parecem arredar-nos, ou ter-nos já arredado, do império clamoroso dos sentidos. E no entanto, persiste em nós esse poder anímico, vindo da selva e alojado nos recôncavos do cérebro reptiliano.
Como escapar ao adultério e nunca trair os votos de fidelidade exclusiva, firmados com um par, se o nosso organismo é hábil a furtar-se às normas da racionalidade e aos ditames dos sentimentos? Como manter intacta a jura inicial que une os humanos se, ao virar da esquina, num lapso do pensamento, num lampejo fugaz de adormecimento da razão, traímos a promessa tonando-nos, por essa via, adúlteros?
Dir-me-ão que não é bem assim, que um pensamento, uma ligeira fuga, uma omissão não definem, por si sós, o acto adúltero. Dir-me-ão que ser adúltero é violar, de modo consciente e intencional, o pacto travado no dia do compromisso e que tudo o resto são deslizes menores, próprios de um ser falível e sujeito ao erro, como é o homem.
Atendendo ao carácter eminentemente adulterador que define o ser humano e a que aludi no início, assim deve ser, de facto. Se, enquanto homens, propendemos a estragar tudo à nossa volta, comprometendo o nosso equilíbrio individual, lançando montões de escória sobre a morada original de que dependemos, não será também próprio de nós trairmos as promessas feitas, mesmo que, no acto de fazê -las, estejamos convictos da viabilidade do seu estrito cumprimento ?
Não tenho uma resposta cabal para semelhante problema e creio que ninguém se arrogará a pretensão de tê-la. Creio que a adultério é muito mais que a traição física, emocional e psíquica consentida e levada a cabo à custa de embustes e mentiras. Creio que o adultério sucede no instante preciso em que o instinto faz o seu apelo e nos encaminha os desejos (mesmo não realizados) para um ser diferente daquele com quem nos comprometemos. Mas creio também que não existe solução e que, no próprio acto de juramento de fidelidade, vem contida a traição, como seu corolário natural.
Se ousarmos reflectir com seriedade, despindo o preconceito, veremos que qualquer compromisso entre pessoas, envolvendo a fidelidade absoluta, está condenado ao fracasso, mais cedo ou mais tarde. E então, o adultério, esse conceito tão imbuído de um carácter pecaminoso e, em tempos, punido pela lei, deve ser instituído como a norma de todo e qualquer compromisso e relevado em absoluto. Ou então, para salvar as relações humanas, libertando -as deste pesado ónus, seria bom que fosse abandonada de vez a fórmula absoluta de um compromisso vital e exclusivo. De qualquer forma não me parece estar a humanidade pronta para assumir uma ou outra destas duas possíveis soluções.
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