quinta-feira, 23 de março de 2017

ADÃO CAMPOS: UMA BIBLIOTECA, UM LUGAR DE AFECTOS!

ANABELA BORGES
Escrevo esta crónica no dia 22 de Março (2017). As emoções do dia anterior latejam ainda muito à flor da pele.

Lá fora, o mundo continua aquele lugar, a um tempo, belo, terrível e inquietante. E, por acaso, está um dia agreste, pesaroso, carregado de ventos gélidos e tempestades.

Ontem foi um daqueles dias em que os afectos – esses lugares de abrigo e afago – fazem o tempo parar. O tempo parou, na biblioteca – esse outro lugar de refúgio e desvelo da alma. E foi na escola.

A escola é o lugar de todos os afectos. Não há educação nem cultura sem afectos. Na escola, é possível encontrar e conjugar todos os afectos, em todas as pessoas, géneros, números e graus.

Celebrou-se a POESIA e sagrou-se o dia ao saudoso professor bibliotecário ADÃO CAMPOS (1964-2016), um ano após a sua partida. Pai, professor, amigo, colega, irmão, filho, tio: são muitas as relações que estão em causa quando alguém deixa este mundo físico para habitar outras alas, longe do alcance do nosso entendimento.

MURAL DE HOMENAGEM 
Muito tempo será necessário para que eu (e creio que o mesmo acontece convosco) me capacite, no meu mais íntimo discernimento, de que aquela pessoa não mais estará presente, in corpore, nos lugares que antes habitava. Para mim, é como que esteja ainda. E na HOMENAGEM que ontem, por entre lágrimas, canções, poemas, música, lhe prestámos, ele estava mais do que presente. Foi possível sentir o seu espírito sereno e o seu sorriso.

Eu creio que os homens bons têm uma simplicidade muito sua, e, ao mesmo tempo, guardam uma carga de mistério que nunca saberemos decifrar. Sempre me pareceu que havia no Adão um entendimento muito próprio do mundo, quase impossível de ser explicado ou discutido. Assim, os seus relacionamentos pairavam muito nas coisas mais simples e belas, nos sorrisos e ações e (quase sempre) em parcas palavras proferidas, entre as muitas lidas nos livros. Volto, neste ponto, a referir que não há cultura sem afectos. Não há, por isso – tal como facilmente se percebia nos contactos mais próximos com o Adão –, salvação possível sem humanidade. Algo do género se depreendia do seu entendimento: apenas a nossa humanidade nos pode salvar (como a Literatura, afinal!).

Ontem, portanto, meu caro amigo Adão, celebrámos a vida, num mar de afectos, pondo a nu a nossa humanidade, dando as mãos – professores, alunos e família – e partilhando memórias e lágrimas de saudade.



O mundo – esse lugar, a um tempo, belo, terrível e inquietante – hoje, dia 22 de Março, traz-nos mais um horror do que é (a falta de) humanidade; hoje traz-nos notícias de horror, terrorismo, guerra, maldade. Hoje estamos mais tristes com os maus acontecimentos do dia, e tu estarás mais triste também, meu amigo, como quando, a propósito de um terror parecido com o que hoje aconteceu em Londres, escreveste no FaceMuro da biblioteca: «O peso do nosso silêncio tem de ser o grito contra este terror surdo e irracional». 

E esse grito ficou vivo em nós, como um eco.



Olá. Espero que te encontres bem, aí onde estás, porque aqui continuas a estar, continuamos a sentir-te aqui presente. Trago-te uma mensagem. De Álvaro de Campos para Adão Campos:

“Ah, comandante, quanto tarda ainda

A partida do transatlântico?

Faz tocar a banda de bordo —

Músicas alegres, banais, humanas, como a vida —

Faz partir, que eu quero partir...” *



Ontem foi um dia forte em emoções, pleno de humanidade. A vida é essa viagem. Façamo-la de humanidade!



Os dias chegam ao fim, mesmo que, por momentos, tenha havido paragens no tempo – como ontem, na tua linda festa; mesmo que nos pareça que não avança; que tenhamos a sensação de que não passamos de seres frágeis e incrédulos, a viver a mentira da tua partida.

Então, tal como nos outros dias, nos fins de tarde em que apago as luzes e fecho a porta da biblioteca, digo-te, Adão, “Até amanhã”.



*In, CAMPOS, Álvaro, “Meu amor perdido, não te choro mais, que eu não te perdi!” (excerto).

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