quarta-feira, 8 de março de 2017

O MUNDO DE PERNAS PARA O AR

LUÍS CUNHA
A imaginação, o sonho, o desbragado e febril delírio, o «irrazoável» e o impossível, todas estas categorias e outras similares são hoje olhados com inequívoca desconfiança. Sobrou, talvez, a «criatividade», mas mesmo esta ganhou uma dominante muito específica: valoriza-se a criatividade na sua dimensão produtivista, isto é, apenas na medida em que dela possa nascer novas empresas, novos modelos de negócio, novas achegas que contribuam para cimentar uma estrita instrumentalidade produtiva. A esquerda parece ter esquecido a utopia no caminho e a direita confunde a liberdade dos cidadãos com o mercado livre. De um lado esquece-se o sonho que mobiliza e transforma e do outro vive-se no contentamento de uma liberdade que chega a cada vez menos e que deixa cada vez mais de fora.

Vale sempre a pena, mas sobretudo em situações como esta, de cerco e desesperança, virar o mundo de pernas para o ar, procurando olhá-lo de um outro e imprevisto ângulo. Melhor se faz este exercício a partir da liberdade literária que das apertadas baias em que a ciência demasiadas vezes se deixa encerrar. Quando falo de virar o mundo de pernas para o ar, não estou a pensar nos prometimentos utópicos nem na depressão das distopias. É verdade que muitas utopias partem de inversões, mas neste caso, quando falo de mundo às avessas, estou a pensar numa outra coisa: neste mundo que é nosso observado e interpretado por uma outro olhar. Não falta exemplos deste exercício na vasta história da literatura. Um deles é de Montesquieu, As Cartas Persas, imaginativa correspondência, escrita no primeiro quartel do século XVIII, onde se retrata a Corte de Luís XIV pela pena de dois supostos persas em viagem por França. Vale ainda hoje pela irreverência e pelo humor, mas o seu maior valor é justamente o de ousar olhar aquele tempo, aqueles espaços e aquelas personagens a partir de um olhar exógeno, o único capaz de relativiza os valores de uma civilização que a si própria se via como exemplo para as demais. Obra mais tardia é O Papalagui (1920), conjunto de discursos atribuídos a um chefe samoano, Tuiavii, no qual se desconstrói, uma vez mais pelo humor, as contradições, limitações e mau viver do «homem branco». Importa pouco se o livro foi escrito, na verdade por um alemão, Erich Scheurmann. Tal como os persas de Montesquieu apenas existiram na sua cabeça, as palavras de Tuiavii vale pela forma como nos olha e nos despe… E tão pouco habituados a vermo-nos nus que nós estamos!

Comecei esta crónica com a intenção de falar de um autor específico e chego a meio sem ainda o ter mencionado. O rodeio justifica-se neste caso, pelo menos assim acha quem escreve. Também neste autor o que de melhor encontramos é esse exercício de nos olhar, quer eu dizer, de olhar a sociedade em que vivemos e o tempo em que nos calhou nascer, a partir de um ângulo imprevisto, num esforço de pôr o mundo de pernas para o ar, como o título da crónica promete. Falo de Albert Cossery (1913-2008), autor que nasceu no Cairo e que desde cedo se fixou em Paris, onde ainda conviveu com autores como Boris Vian, Jean Genet ou Camus. Não escreveu muitos livros, pouco mais de meia-dúzia em mais de meio século de carreira. Orgulhava-se disso, afirmando escrever uma linha por dia, o que no seu caso liga bem com o universo que criou: um mundo de indolência, preguiça e contemplação, também de injustiça, é verdade, mas um mundo que tem valor justamente por se distanciar com horror do mundo assertivo, arrumadinho e fanaticamente produtivista em que vivemos. «Não fazer nada», dizia, «é uma atividade interior, não é preguiça, é reflexão».

Pode encontrar-se a aplicação prática desta nobre reflexão em toda a sua obra, mas sugiro que comecem por ler Mandriões no Vale Fértil (1947), que existe disponível em edição da Antígona. Trata-se do retrato de uma família, composta exclusivamente por homens, que vive no mais absoluto e impensável ócio, partilhando o horror ao trabalho. Na verdade é mais que isso: neste mundo invertido a ética do trabalho surge uma abjeção e a vontade de trabalhar como uma insolência. A trama do romance está justamente nessa vontade incompreensível de trabalhar, verdadeira traição aos sólidos princípios familiares, que de repete acomete Serag, uma verdadeiro rebelde, capaz de desrespeitar o princípio sagrado do descanso e da inação:

«Serag ouvira dizer que os homens trabalhavam mas aquilo eram estórias que toda a gente contava. Quanto a ele, não conseguia acreditar. Pessoalmente nunca vira um homem trabalhar, tirante esses fúteis e irrisórios ofícios que a seus olhos não tinham qualquer valor atrativo. E no entanto, desde há muito, perseguia-o o desejo de ver um desses homens que as suas próprias mãos trabalhavam duramente, mostrando os estigmas do labor que as mói. Era coisa, porém, muito difícil de alcançar, visto não saber de nenhum meio prático capaz de o levar a encontrar tais pessoas. Desde que tentava trabalhar, em vão se esforçava por lhes seguir as pegadas. Em casa, os parentes consideravam-no um doido varrido e um maníaco perigoso”.

Teimoso como todos os maníacos, Serag não desiste facilmente, nem mesmo quando são também os de fora da família, como Antar, um menino caçador de pardais, a chamar-lhe a atenção para a insensatez do seu desejo. Rafik, um seu irmão lá se esforça por lhe dar bons conselhos:

«- Sabes tu, por acaso, meu caro Serag, que há países onde os homens se levantam às quatro da madrugada para irem trabalhar para as minas?

- Para as minas! estranhou Serag. Isso não é verdade, queres-me meter medo.

Ficou vivamente impressionado. A inquietante conceção do trabalho que Rafik nele inoculava, gota a gota, como um veneno, acabava por lhe parecer verídica. Teria gostado de saber mais, mas Rafik calara-se, recomeçando a andar pelo quarto.

- Diz-me cá, mano Rafik, isso que tu disseste não é verdade, pois não?

- O quê?

- Que há países onde os homens acordam às quatro da manhã para irem trabalhar para as minas.

- É verdade, sim senhor, assegurou Rafik. Por aqui ainda não temos minas, mas lá há de vir o tempo. Hão de descobri-las. Hão de descobrir tudo e mais alguma coisa para porem os homens a trabalhar e embrutecê-los.

- Mas não será possível trabalhar de outra maneira?

Rafik deu uma breve risada. Divertia-o ver Serag apavorado como uma criança.

- Não te assustes. No nosso país ainda não há minas. Mas os homens são capazes de tudo. Hão de desencantar a maneira de descobrir minas mesmo onde não as houver».

Resta-me confirmar que descobriram mesmo minas, e que descobriram mais: fábricas, regras, horários, uma disciplina do corpo que visa ir além do corpo. Descobriram e continuam a descobrir. No entanto, os vales férteis, como o retratado no livro, existem mesmo, é só preciso conseguirmos olhar o mundo de pernas para o ar.

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