terça-feira, 11 de outubro de 2016

OS LIVROS QUE NUNCA LEREI

LUÍS CUNHA
O convite para colaborar na BIRD Magazine, além da satisfação que me deu, trouxe consigo uma dificuldade que enfrento pela primeira vez. Falo do compromisso de uma escrita regular que cumpra o melhor possível duas condições que a mim mesmo imponho: escapar ao estrito redil da minha especialidade académica e manter uma razoável coerência temática e de estilo no que for escrevendo. Foi partindo destas condições autoimpostas que decidi fazer dos livros o centro destas crónicas. Num país onde se lê pouco, apesar de se editar bastante, há sempre livros que escapam à nossa atenção; outros que diariamente se perdem na voragem da novidade; outros ainda que guardamos nas estantes esperando que o tempo se disponha a dar-nos tempo para os ler. Os «Livros são papéis pintados com tinta», diz o verso de Pessoa no tom encenado de quem os desvaloriza. Será pois com essas pinturas que aqui me ocuparei. Serão crónicas feitas a partir de leituras, umas instigantes outras frustrantes, tanto quanto de desejos confessados de ler o que ainda na li. Na era do digital as minhas palavras não alcançarão a forma de papéis pintados mas se alguém nelas descobrir cor isso bastará à satisfação de quem escreve.

Num momento que sempre me pareceu notavelmente inspirado, George Steiner escreveu uma série de ensaios a que deu o título de «Os livros que não escrevi». Juntou aí uma mão cheia de textos sobre temas que o interessavam, sobre os quais gostaria de ter escrito livros inteiros, sem que no entanto tivesse encontrado tempo ou oportunidade para o fazer. Condensou-os, por isso, nesse livrinho sob a forma de breves ensaios de estimulante leitura. Não é, no entanto, pelo conteúdo, que aqui refiro este livro, mas apenas pelo seu título. Sem a inspiração ou o talento de Steiner, mas contagiado pelo seu redondo «Não», ocorreu-me escrever sobre os livros que nunca lerei. No caso do ensaísta havia um lamento por não ter podido escrever o que pretendia, não sendo necessariamente esse o meu caso. No que me diz respeito, misturam-se nesta negação livros que faço questão de não ler com outros de leitura impossível. Falta vida e sobram livros, é bem verdade, mas é justamente por isso que devemos ser criteriosos.

Enunciar pela negativa é fácil; concretizar a renúncia é mais difícil. Desde logo por respeito ao sensato aforismo que avisa «Nunca digas -- desta água não beberei» e também por eu ser um desorientado leitor que gosta de saltitar entre temas, géneros e “escrevedores”. Como os princípios valem mais que as denúncias, justo é que a enunciação dos critérios de recusa venha antes da ilustração com obras concretas. Ocorrem-me três critérios, que podem valer como «solteiros» ou combinados, dependendo da vontade de cada um. O primeiro é da ordem da razão e bom senso e prende-se com a inutilidade, irrelevância ou impossibilidade de leitura; o segundo é do domínio da ética e reporta à necessidade de higiene física e mental do leitor; o terceiro é estético, vincando a pobreza de muito do que é oferecido à leitura. Em termos práticos e operativos, cada leitor deve fazer o uso que entender conveniente destes critérios; a mim servem-me de guia imperfeito mas prático no labirinto de bibliotecas e livrarias.

Apenas para que o leitor tenha ideia da aplicação prática, vem-me à ideia um exemplo recente de uma obra que classifico como rara por conciliar na perfeição os três critérios de rejeição que defini. Trata-se de «Eu e os políticos» de José António Saraiva. Desnecessário lê-lo mesmo por aqueles a quem o tema eventualmente interessasse, pois tudo o que ali se diz já foi partilhado, de forma escandalizada ou sórdida, em tudo quanto é fórum virtual, jornal impresso ou entretenimento televisivo. Leitura a evitar também por razões éticas e de princípios: um cavalheiro não espreita pelo buraco da fechadura nem escuta arás das portas e tampouco aceita convivência com energúmenos que o façam. Finalmente, no plano estético, considerem-se as pretensiosas e medíocres incursões do autor no campo da literatura como recomendação mais que séria para afastar de nós «Eu e os políticos».

Também nunca lerei, atrevo-me a dizê-lo, qualquer livro das vastas prateleiras da auto-ajuda, coaching ou disparates similares. Vale, neste caso, o primeiro critério por sobre os demais. A livros que assentam na ideia de que temos que aprender a olhar para nós, como se o espelho não fizesse isso desde os mais remotos tempos, nada encontro de recomendável. Arrepiam-me as fortunas ganhas a troco de nada, em nome da relevação de uma potência que os atolambados leitores sempre tiveram dentro de si. Forma moderna de venda de banha-da-cobra, é o que me parece, sem que se preserve, sequer, a estética barroca de uma verdadeira venda de feira. Nenhuma virtude encontro em tais «escrevedores» nem qualquer utilidade na prosa que destilam, mas pode o defeito ser meu, naturalmente.

É ainda da ordem da razão reconhecer a impossibilidade de leituras que, no entanto, muito gostaria de fazer. Pensemos num bom dicionário da língua portuguesa, o Houaiss, por exemplo. Começar pela vogal «a» e acabar no sonolento «zzz» tem tanto de sedutor como de impraticável. Émile Benveniste ensinou-nos que nunca é tempo perdido aquele que consumimos no aprofundamento de um vocábulo, no exercício de olhar a etimologia como quem olha as raízes do que viemos a ser. Um monumental dicionário, como o que referi, é um labirinto de leitura impossível, já o sabemos. Porém, e voltando a Pessoa, se a minha Pátria é a língua portuguesa, que melhor português não seria eu se detivesse e pudesse usar todos os instrumentos e recursos que esta percorrida língua nos oferece. Abro aqui uma exceção à cavalheiresca regra de não espreitar por frinchas nem escutar o que os outros dizem. Em se tratando desta língua que nos une vale a pena abrir um dicionário como quem abre portas e janelas, espreitar sem pudor, e sem pudor escutar quem a usa, mesmo que esse uso pareça abuso àqueles que se remedeiam com duas centenas de vocábulos lusos pintalgados com uma dezena de anglicismos encontrados em promoção.

1 comentário:

  1. Muito bem, gostei do que li,felicito-te, por este trabalho que vais ter, agradecendo também às pessoas que apostaram em ti, por mais este compromisso que te deram, que de certo te vais sair muito bem.Parabéns.

    ResponderEliminar