SÉRGIO LIZARDO |
Estão a morrer os exemplos. Os exemplos de bom pai ou mãe estão a morrer. Os exemplos de bom filho ou filha estão a morrer. Os exemplos de bom patrão estão a morrer. Os exemplos de bom funcionário estão a morrer. Os exemplos de bom colega estão a morrer. Os exemplos de bom governante estão a morrer. Os exemplos de bom cidadão estão a morrer. Os exemplos de bom professor estão a morrer. Os exemplos de bom aluno estão a morrer. Os exemplos de educação estão a morrer. Os exemplos de consciente e consciencioso estão a morrer. Os exemplos de solidariedade estão a morrer. Os exemplos de fraternidade estão a morrer. Os exemplos de igualdade estão a morrer. Os exemplos de bondade estão a morrer. Os exemplos de normalidade estão a morrer. Os exemplos de uma vida estão a morrer. Estão a morrer os exemplos. Estão a morrer os exemplos. Estão a morrer os exemplos. Estão a morrer os exemplos e, sem a capacidade de sermos bons exemplos, não o dizemos as vezes que o devíamos dizer. Estão a morrer os exemplos, senhoras e senhores, e os culpados somos todos nós. Todos, exceto os poucos que ainda nos servem de bons exemplos. Quando morrermos, que não sejamos todos bons exemplos por termos sido os responsáveis por tirarmos ao mundo as pequenas boas imperfeições que fazem dele um mundo bem mais interessante, mas que sejamos bons exemplos de gente que seguiu os exemplos bons – o mundo tem ironias assim. Ironicamente: bateram-me no carro, devidamente estacionado, e não me deixaram sequer um bilhete escrito com nome e número de telefone (é um bom exemplo de que ainda há analfabetismo neste país). Ironicamente ainda: vi, há dias, dois carteiros que conversavam, enquanto, à sua frente, um senhor cego se encaminhava, claramente perdido e desorientado, para o meio da rua (são bons exemplos de bons carteiros, estavam certamente a conversar sobre o seu trabalho, e não tinham que interromper a conversa de cariz laboral para ajudarem o homem); esse senhor foi ajudado por outro que, tendo visto o que se passava, correu para ele, desde o outro lado da rua (é bom exemplo de mau peão, porque atravessou fora da passadeira). Ainda há bons exemplos, mas poucos bons exemplos do bom. Muitos bons exemplos do bom já morreram e outros estão a morrer. Alguns bons exemplos são bons exemplos do que é mau, e exemplos do que é bom, infelizmente, restam já poucos. Ironias colocadas à margem, vi, também há poucos dias, uma jovem que ajudava uma senhora de idade a encontrar a morada de um “médico muito bom”. A velocidade reduzida a que a senhora caminhava, com a ajuda das frágeis pernas e de uma velha bengala, obrigou a que a jovem apertasse também o passo para a acompanhar, e eu, que ali estava parado, à espera de alguém que chegou a horas (eu é que me adianto sempre), pude perceber que a jovem ajudava a senhora de idade, que era um consultório médico que esta procurava e que a outra iria perder o autocarro que a levaria à Faculdade a tempo de assistir a uma aula. Disse a jovem, a dada altura: “vou faltar a Sociologia, isto faz parte da matéria”. Pensei: nem tudo está perdido. Mas, entretanto, já vi pais que dão aos filhos o que não mata fome nem sede, a não ser que os filhos sejam máquinas também; já ouvi filhos a tratarem os pais como os meus jamais permitiriam que os tratasse (se o fizesse, eles dar-me-iam o merecido corretivo que não vi acontecer e duvido que tenha acontecido); já vi telejornais; já li jornais; já andei por ruas, serviços e repartições; já ouvi, do mais inacreditável, de tudo um pouco. Concluí: há esperança – só quando o último exemplar de bom exemplo do que é mesmo bom morrer é que ela morrerá também.
Sem comentários:
Enviar um comentário