segunda-feira, 10 de outubro de 2016

DO RUÍDO E DO SILÊNCIO


«Ah, o silêncio torna-se ainda mais profundo, e uma vez mais o meu coração se dilata; espanta-se com a verdade nova, ele próprio fica sem voz, ele próprio se junta aos risos quando a boca lança um grito sobre esta beleza, ele próprio goza a doce maldade do seu silêncio.»
F. Nietzsche


ISABEL ROSETE
Falar do silêncio configura de imediato um paradoxo, pois falar, ou escrever, é sempre a interrupção do silêncio, como diria David le Breton. E, bem vistas as coisas, o mero pensar não passa disso mesmo. O silêncio é o envolvente universal das coisas, o pano de fundo em que elas se recortam, assumindo a sua condição de objecto. Não é preciso ser dotado de capacidades geniais, ser um contemplativo, um filósofo ou um monge tibetano para o constatar.

A Modernidade - com a sua dissolução mediática do mundo, mais do que qualquer outra forma de Cultura - tem horror ao significado aparentemente vazio do silêncio. Os média, com toda a massificação que em si mesmo incorporam em prol dos índices de audiência, são, aliás, prova irrefutável disto mesmo. O único silêncio que a utopia da comunicação de massas conhece é o silêncio da avaria, da pausa emergente, da falha técnica, que promove a suspensão da escuta e da visão, por alguns instantes, nunca aplaudidos pelo espectador ansioso pelo reinício da emissão. O que se instaura é mais o cessar da tecnicidade do que o aparecimento de uma interioridade. O ruído omnipresente, tão característico das sociedades contemporâneas, tornou-se um meio identitário, um modo de ser, de estar ocupado e preenchido, mas não um modo de ser do indivíduo. A Modernidade encetou monteadas a todas as formas de silêncio: exorciza-o, conserva-o à distância, considera-o politicamente incorrecto.

Somos, cada vez mais, incapazes de nos abrirmos a uma aprendizagem serena do silêncio, de escutar as vozes silentes da Terra, os sons ermos dos campos no calor quieto da tarde, os céus parados e calados de brilhos intensos, quais momentos perfeitos para a introspecção, para reflexão sobre esta humanidade errante e sobre este nosso mundo in-sano. Perdemos, definitivamente, o sossego e não somos mais hábeis para fruir o riso sem som, de nos determos na escuta, de nos emudecermos, de percebermos que, até Deus, entreabre um olhar no silêncio do campo em ruínas, de regressarmos ao silêncio fundamental, de onde brotam as palavras e os discursos primordiais que as suportam.

Justifica-se, frequentemente, a fobia do silêncio, pois a palavra é o único antídoto para as múltiplas formas de totalitarismo, que procuram reduzir a sociedade (“insolente”) ao silêncio absoluto. É a grande estratégia dos políticos, das figuras públicas mais influentes. Mas não usam eles, os totalitaristas e as tais figuras públicas de ideologias fechadas, a palavra como forma de calar a voz dos que ainda escutam os desígnios insondáveis do Ser, da Vida e da Morte?

O silêncio deixou de fazer parte da nossa Cultura. O silêncio tornou-se um intruso, um abismo no seio do discurso, um factor de desconforto, qual circunstância penosa, assunto particularmente impopular nos nossos dias, que correm esmagados pela agonia da demagogia “barata”, que tanto ilude muitas das mentes ditas (mais) esclarecidas, que comove as massas, sedentas de ouvir qualquer coisa que soe bem, mas, no entanto, incapazes de atentar no ser essencial das palavras-de-origem, esse modo de ser da Linguagem, onde a verdade e autenticidade das coisas nascem e são.

A problemática do silêncio é, conquanto, paradoxal: a saturação da palavra, dos discursos eloquentes, ou seja, vazios de conteúdo significante, das mais engendradas tagarelices dos renascidos sofismas, induzem, cada vez mais, ao fascínio do silêncio. Ambivalente enquanto estádio ou estado perante posturas antagónicas, o silêncio suscita o amor e o ódio. Ousar falar do silêncio, torna-se um tema provocatório, quiçá contra-cultural, uma vez que contribui para subverter o conformismo pacóvio, o efeito anestesiante e dissolvente do ruído incessante, que nos impede de ouvir até a boca aberta num grito. Os nossos ouvidos estão entranhados de “lixo orgânico”. Tornaram-se “patologicamente” moucos para o que importa ouvir na escuta essencial e, as nossas mentes e as nossas casas, jamais adormecem no silêncio necessário ao sono revigorante.

O silêncio assume, sem dúvida, uma função reparadora, eminentemente terapêutica, repondo, pelo discurso inteligente, a necessidade vital de integridade. Na sua ausência, perdemo-nos nas palavras, perdemos o fio condutor do crescente labirinto do discurso. Essa infindável imensidão do silêncio rodeia qualquer escrito, qualquer assunto, qualquer forma de existência humana, deixando-lhe, justamente, a possibilidade do seu encaminhamento ao longo de uma margem sem princípio nem fim, sem norte, sem destino. Para escutar o mundo e outro, é necessário saber partir do silêncio, que nos induz à nobreza da fala.

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