terça-feira, 23 de janeiro de 2018

AS FRANJAS DO DESESPERO

REGINA SARDOEIRA
O desespero envia-nos para lá do sofrimento, a angústia amarra-nos ao paradoxo de viver e nesta dupla encenação subjectiva se vai tecendo a trama do ser humano: humano, porque assim o designamos nós, a meio caminho entre a divindade e a besta ou entre a besta e a divindade, que a ordem dos termos não é arbitrária. Pelo desespero, damo-nos conta da necessidade de ascese e, no percurso escatológico, forçamos a subida dos lodaçais miseráveis dos pequenos nadas até aos prodígios onde a clareza se expande e o arco-íris rasga o acervo plúmbeo do vestuário cerúleo. A angústia permanece na esfera prodigiosa e recôndita da consciência lúcida que nos segreda a premência da missão e, em simultâneo, nos faz temer não sermos os escolhidos; a angústia agarra-nos no segredo dos acordares em noites de sombra, para nos fazer duvidar da nossa magnificência reconhecida na apoteose que o olho solar engendra. O desespero e a esperança, aparentes antónimos, são contudo o reverso dialéctico um do outro, já que é nas sendas mais sombrias do negrume ou do arrepio, ou do suor frio urdido no medo, que bruscamente a vontade se arvora na soberania da esperança. A angústia é o reflexo da centelha divina, a subtil tomada de consciência da irmanação com o supremo ente, quer ele tenha uma espécie de corporeidade transhumana, quer se amalgame ao todo e se assuma em panteísmo absoluto. Sedentos da supremacia divina e contudo presos às esferas falazes de uma condição orientada para uma certa finitude, cremo-nos investidos de uma missão, à semelhança da que foi outorgada a profetas, a messias e a anjos e, no entanto, há uma linha de demarcação que não ousamos ultrapassar, ou porque não nos chegue a força de apenas humanos, ou porque não tenhamos fé suficiente para alçarmos a nossa figura nos ares. Contudo, toda a fé é paradoxo, toda a crença, absurdo e escândalo, pois nos envia para regiões de que apenas suspeitamos, ou porque a elas acedemos por uma crença desprovida de razoabilidade, ou porque o inconsciente, tornado espírito, nos revela insondáveis regiões de que nada sabemos, mas para que tendemos numa escalada sem fim. E é então que o iluminado grita imerso no circuito de sombra que toda a luz invariavelmente produz: Serei eu o escolhido? Será minha esta missão? Encontrar-me-ei na plenitude deste reino, soberano de mim, soberano do mundo e no mundo e mesmo para além dele ou, pelo contrário, nada haverá por detrás do vigor esplendoroso da luz que apela ao meu caminhar decidido e possante?
Assim vive o ser consciente, saído da bestialidade, quando a coluna erecta lhe retirou os olhos do solo e o expôs, triunfante e vulnerável, à vastidão de todos os mundos, estes, que pisamos com passos de matéria, e os outros, a que nos alcandoramos, pendurados em poderosos eflúvios de uma espiritualidade energética que não ousamos ou não podemos prender. 
Porém, nem todos são humanos deste modo, já que a maior parte se queda no conformismo auto-complacente e ousa apenas perseguir pequenas metas, crentes, todos esses, de que o mundo está aí para compromissos medianos, humílimas realizações, miseráveis empreendimentos a que, no entanto, ousa chamar nomes grandiosos. Esses, bípedes de coluna erecta e contudo rastejantes, nada entendem do desespero e da angústia dos que planam acima deles e contudo lhes parecem soterrados em lamaçais – pois nos lamaçais ergueram as suas casas e neles acham que deve viver o foragido das nuvens e dos picos altaneiros. Blasonam, impiedosos e contudo ridículos, pois lhes agradaria dominar o ser das alturas e fazê-lo enlamear-se com eles no atoleiro dos seus princípios vãos; não hesitam em chamar-lhe louco, pois não poderão entender nunca que essa loucura, ainda que supostamente pejada do visco com que o olhar se lhes nublou e que, por isso, encontram em tudo, é incompatível com os lugares-comuns do comedimento térreo. Pudessem eles, essses seres da mediana condição, lançar os olhos para o alto de si e perceber que o único lugar que lhes convém (se acaso se cruzaram com os predestinados nas horas de descida, que também lhes acontecem após voos delirantes em que se tornam os esfarrapados da grandeza, decerto débeis, decerto aluados) é deixá-los ser quem são e fazer por eles a parte que o tempo não lhes permite e contudo o mundo lhes exige! Mas não podem! Era necessário que os tingisse um pingo, ao menos, de grandeza e que fossem, ao menos, um pouco leves para entenderem o carácter diáfano desses que se apressam a insultar, apenas porque não têm, da ordem da vida, idênticas definições.
Talvez o equilíbrio pudesse ser restabelecido nessa espécie de osmose em que o etéreo e o terreno se completassem em harmonia! Mas nunca pode o ser terreno pretender que o celestial se lhe submeta, pois é dele o céu e as nuvens e o esplendor de todos os matizes e nimbar-se deles, mesmo não os entendendo, seria sempre condição de crescimento para o bípede profano de pés assentes no húmus que o prende.

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