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NORBERTO PIRES |
Sempre gostei muito de baratas porque são máquinas fantásticas de locomoção e porque são estúpidas. Na verdade, elas andam tão bem um pouco pelas duas razões: têm uma estrutura mecânica otimizada (e muito simples) para a locomoção e quando encontram problemas resolvem-nos sem pensar e sem ativar de imediato o seu sistema nervoso central.
Quando disse isto, em tempos, à minha mulher Martha, que esteve uns meses em Macau a trabalhar num jornal, ela não achou grande piada porque as baratas vivem aos montes naquele clima e são impossíveis de extinguir.
Mas na verdade, por incrível que possa parecer, a robótica está a aprender muito com seres vivos como as baratas. Não para chatear jornalistas a precisar de descanso, mas para aprender como construir sistemas mais eficientes. A nossa forma de pensar tende a adicionar sensores a tudo, bem como dispositivos de processamento de dados (processadores), que permitam observar tudo, processar e corrigir. Ora, se observarmos o comportamento da natureza não é bem assim que as coisas se passam, verificando-se que em muitas tarefas se deixa à solução mecânica a maior parte das respostas e só muito mais tarde, em casos extremos, é que o sistema nervoso central é ativado e chamado a intervir. Um bom exemplo é a barata. Mecanicamente é um excelente projeto de uma máquina capaz de andar. Para além disso, como demonstram experiências feitas na Universidade do Michigan, e muitas outras, se o seu movimento é perturbado a barata resolve isso recorrendo às suas capacidades mecânicas: ou seja, o sistema de locomoção é, em grande medida, passivo. Não reage de forma ativa, disparando o sistema nervoso, a todas perturbações. As mais simples são resolvidas de forma passiva. O resultado geral é uma excelente máquina de locomoção.
Isso significa que no curso da evolução a natureza achou que um bom sistema de locomoção não precisava de ser reativo e deveria era depender de um bom sistema mecânico, pois isso tornava-o bem mais previsível e fácil de controlar. Isto é importante não só para a robótica, mas também para a biónica. Se quisermos perceber aquilo que faz um sistema de locomoção fiável e seguro, talvez isso implique observar como fez a natureza durante vários milhões de anos em vários dos-seres vivos que temos hoje, incluindo o homem.
Mas isto não é nada de novo na forma de pensar. Um dos maiores engenheiros de todos os tempos, o fantástico Leonardo da Vinci dizia que a melhor forma de realizar dispositivos eficientes era observar a natureza. Devo confessar que descobri o génio de Leonardo quando iniciei em 2002 uma compilação de uma nota de revisão histórica para um livro que estava a escrever. Fiquei abismado com as capacidades, interesses e universalidade deste homem do renascimento. Dotado de um intelecto superior, o artista Leonardo da Vinci percebeu que a visão era um meio fundamental para adquirir conhecimento, estudar e perceber os fenómenos naturais: Saper Vedere (“saber ver”) era a chave para desvendar as criações naturais e, com esse conhecimento, imaginar e projetar mecanismos que tentavam reproduzir as características naturais em que estava interessado. Desenvolveu um invulgar poder de observação que, aliado à sua enorme e reputada capacidade para desenhar objetos tal como eram, se tornou no seu principal instrumento de investigação. Anotava os seus estudos de forma gráfica (o texto servia para complementar os gráficos e esquemas) nos seus cadernos de apontamentos (Codex Atlanticus, Ms.B. Ms.I., …, hoje guardados no Museu da História da Ciência - Florença, Itália, ou pertencentes a colecções particulares como é o caso do Codex Leicester que pertence a Bill Gates, cofundador da Microsoft).
Figura 1 – Estudos de Leonardo da Vinci para um robô antropomórfico.
Teve acesso aos desenhos e projetos dos Gregos, documentados pelos Árabes em publicações que estavam já traduzidas. Fez estudos de anatomia humana e animal (nomeadamente de aves, na tentativa de reproduzir o seu voo), tinha conhecimentos de mecânica e projetou e, provavelmente, construiu mecanismos que reproduziam movimentos e funções humanas. No entanto, poucos desses desenhos chegaram até hoje e muito poucos sobre o projeto secreto de um robô foram encontrados. Do seu maior livro de apontamentos, o Codex Atlanticus, faltam algumas páginas precisamente na altura em que parecia preparar-se para projetar um robô (Figura 1). Isso levou alguns investigadores a especular que as páginas em falta continham os estudos para um robô espetacular de aspeto humano (um cavaleiro andante com uma armadura germano-italiana típica do século XV). Teria sido projetado entre 1495 e 1497, mais ou menos na altura em que pintou A Última Ceia e elaborou a decoração da Sala delle Asse do castelo da família Sforza em Itália. O ambiente retratado nos tetos e paredes da sala, uma floresta de árvores altas, com as cúpulas pintadas no teto e os troncos nas paredes, parece ser o ambiente adequado para um cavaleiro andante mecânico. Era, ao que se pensa, capaz de mover a cabeça e braços, levantar-se e sentar-se, abrir e fechar o maxilar da armadura, emitir sons, etc. Teria, pelo menos, dois sistemas de juntas diferentes: pernas com três graus de liberdade (joelhos, tornozelo e anca) e braços com 4 graus de liberdade (ombro, cotovelo, pulso e mãos). A fonte de energia era hidráulica, recorrendo a canais que passariam por debaixo da sala. Mas ele poderia ter pensado em usar também molas e/ou contrapesos. Este projeto seria o corolário lógico dos seus estudos de anatomia e mecânica.
Pode ser que ainda um dia sejam encontradas as folhas perdidas do Codex Atlanticus numa qualquer biblioteca europeia ou coleção particular. No entanto, Leonardo da Vinci é conhecido pelos seus estudos incompletos e pela forma peculiar como escrevia os seus apontamentos da direita para a esquerda, como a imagem num espelho, de uma forma em que parece falar consigo próprio e não para eventuais leitores. Os seus apontamentos são uma espécie de monólogo, que ele não sentiu a necessidade de publicar, embora isso fosse já possível na sua época. Por qualquer razão pode ter destruído essas páginas e desmontado todos os mecanismos relacionados com elas, de forma a que não fossem reproduzidos. Ou outros o fizeram por ele, por razões políticas ou religiosas.
O que quero dizer com tudo isto é que a imaginação da natureza é muito, muito maior do que a imaginação do homem. Em 2007 escrevi um texto que publiquei no blogue “De Rerum Natura” e que reproduzo aqui no essencial. O watt é a unidade de potência (energia/tempo), e é usada para especificar a variação de energia de um sistema por unidade de tempo. A energia é aqui apresentada como trabalho, ou seja, a energia consumida na realização de uma determinada tarefa. Por exemplo, enquanto escrevia este texto estive a ouvir a música “Safe from harm” dos Massive Attack (do álbum Massive Attack Collected). Durante esse tempo o meu ouvido interno esteve a realizar o equivalente a um bilião de operações em vírgula flutuante por segundo. Fazendo equipa com o meu cérebro, o meu ouvido interno (assim como o de um qualquer ser humano normal) consegue distinguir sons até 120 dB, e identificar uma conversa particular no meio de uma multidão de pessoas (não é que eu seja cusco, mas é verdade). Nenhum sistema artificial atual, construído com a nossa mais sofisticada tecnologia, consegue fazer algo que se aproxime. E o que é verdadeiramente espantoso é que o ouvido interno consegue esse processamento de forma muito eficiente consumindo somente 14*10-6 watts, isto é, poderia trabalhar durante 15 anos consecutivos com a energia fornecida por uma pequena pilha AA.
De facto, o corpo humano consome 100 watts, e o nosso cérebro somente 50 watts. Todo o nosso sistema biológico é altamente eficiente do ponto de vista energético, e nós sabemos que tem capacidades muito avançadas, muito para além daquilo que conseguimos fazer com a nossa tecnologia. Só para terem uma ideia, o meu PDA que também é telefone consome 21.6 *10-3 watt em standby (ou seja, sem fazer nada) e esgota a bateria de 3.6 volts (1200 mAh) em 200 horas (8.3 dias). Se estiver a ser usado para telefonar dura poucos dias (3 a 4 dias), ou seja, consome cerca de 60 * 10-3 watts. E é um dispositivo limitado, com capacidades de processamento muito inferiores ao meu ouvido interno.
Ou seja, estamos muito longe de construir sistemas comparáveis com o nosso cérebro, ou sistema auditivo, visão, tato, locomoção, sentido de orientação, etc. Se fossemos capazes de copiar a sua eficiência resolvíamos os problemas energéticos mundiais, para além de termos capturado a forma como os sistemas biológicos processam informação, o que constituiria em si uma enorme revolução.
É interessante notar que grande parte do processamento realizado pelos nossos sistemas neuronais é analógico, sendo a informação posteriormente digitalizada. O ouvido, por exemplo, realiza operações de filtragem, análise de frequência, compressão, etc., antes de transmitir a informação ao cérebro. As células do cérebro (neurónios) podem ser entendidas como um conversor analógico para digital (ADC - analog to digital converter) especial. Recebem informação de outros neurónios, integram essa informação de forma analógica, e disparam (1), ou não (0), impulsos nervosos para outros neurónios.
Consequentemente, o nosso procedimento atual de digitalizar tudo e aplicar à informação obtida técnicas de processamento digital parece estar errado: a natureza não foi por aí. Sempre usamos como argumentos para evitar o processamento analógico a falta de precisão, a flutuação e variância com a temperatura, etc., e consequentemente optar pelo processamento digital, mais estável e menos dependente da precisão dos componentes elementares. No entanto, os nossos olhos e ouvidos proporcionam informação de alta qualidade usando elementos analógicos pouco precisos. Como resolveram esse problema? Que mecanismo(s) engenhoso(s) realizaram para interligar esses elementos produzindo um resultado muito eficaz e verdadeiramente fabuloso?
Temos muito a aprender com a natureza para projetar soluções mais eficazes e eficientes, nomeadamente aprendendo como os sistemas biológicos fazem funcionar a estratégia de utilizar o processamento analógico (energeticamente muito eficiente) antes de procederem à digitalização da informação. Temos de perceber como conseguem ser eficientes e robustos usando dispositivos pouco precisos e com muito ruído, quando usados em larga escala. Temos de perceber como são capazes de trabalhar em vários períodos de processamento (que variam entre milissegundos e dias) e com distâncias variáveis (que variam do micrómetro ao centímetro). Hoje, com a nossa eletrónica sofisticada, não conseguimos nada que se aproxime e seja estável. Precisamos de perceber como fazem esse processamento paralelo tão maciço.
Uma célula humana do cérebro é capaz de integrar informação de várias outras células, e produzir informação para várias células numa cadeia de processamento paralelo em larga escala. A nossa capacidade atual é muito inferior e limitada pelo número de ligações que conseguimos colocar num chip eletrónico. Mas também porque não sabemos como funciona o nosso cérebro, como podemos passar informação de forma segura e efetiva às zonas do cérebro que processam esta informação. Talvez porque a nossa imaginação seja muito mais limitada. Por exemplo, existem vários trabalhos e projetos que tentam devolver a audição ou a visão a pessoas que perderam esses sentidos. Mas os resultados são dececionantes, nomeadamente quando comparados com as capacidades do sistema original (nem é possível uma comparação, dada a enorme diferença de qualidade). Mesmo coisas aparentemente mais simples, como devolver alguma mobilidade (substituição de membros, por exemplo), têm resultados dececionantes quando comparados com o original. Há algo errado, talvez um erro sistemático, na forma como abordámos estes assuntos. Talvez seja altura de parar e ver como fez a natureza, que caminhos seguiu, e quais os que tiveram mais sucesso.
Perceber os mecanismos da natureza, a forma com resolveu os problemas que se lhe colocaram, nos vários seres biológicos, criando soluções robustas e eficientes, é o objetivo de uma nova área da engenharia que se denomina “neuromorphic engineering”.
Imaginem uma simples célula humana; o conjunto de interligações químicas que lá ocorrem formam um fabuloso computador que regula o seu crescimento, estrutura, reprodução, ligação com outras células, etc. Imaginem que percebíamos como funcionava, que eramos capazes de reproduzir pelo menos algumas dessas funcionalidades. Imaginem que dominávamos esse poder. Poderíamos criar redes de computadores capazes de aplicações que estão ainda fora da nossa imaginação.
Pois é, a imaginação da natureza é bem maior que a imaginação humana. Que o digam as… baratas!
Leitura suplementar:
1. Instantaneous kinematic phase reflects neuromechanical response to lateral perturbations of running cockroaches, S. Revzen, Springer Biological Cybernetics, Abril de 2013
2. Leonardo Architect, C. Pedrettii, New York: Rizzoli International Publications, 1981.
3. Robots Robots Robots, H. Geduld e R. Gottesmann, Boston: New York Graphic Society, 1978.
4. The Genius of Arab Civilization, J. Hayes, Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1983.
5. In the Footsteps of Leonardo, M. Rosheim, IEEE Robotics and Automation Magazine, June 1997.
6. Robot Evolution: The Development of Anthrobots, M. Rosheim, New York: John Willey & Sons, 1994.
7. Robot Hands, M. Rosheim, New York: John Willey & Sons, 1996.
8. The Imagination of Nature is Far, Far greater than the Imagination of Man, J. Norberto Pires, “De Rerum Natura”, 2007 - http://dererummundi.blogspot.pt/2007/05/imagination-of-nature-is-far-far.html