GONÇALO NOVAIS |
A
tarefa de tentar apresentar, numa linguagem tão acessível e prática quanto
possível, todo um conjunto de conhecimentos estruturados e organizados numa
teoria, seja ela qual for, é uma tarefa que requer um avanço cuidadoso na forma
como os conteúdos se vão explicando, a fim de que possa ser possível ao leitor
transportar para a prática todo um conjunto de conhecimentos teóricos de grande
valia, promotores da qualidade do seu trabalho.
No artigo de opinião anterior apresentou-se
a motivação como um PROCESSO. Sublinhar isto nunca é demais, dada a enorme
valia pedagógica desta perspectiva. Podem, com efeito, existir dias melhores
uns do que outros, mas a motivação é um processo muito mais estrutural do
processo de desenvolvimento desportivo das equipas. Uma coisa é “estar na mó de
baixo” num momento ou outro, outra coisa é ter grande dificuldade em
ultrapassar esse estado. Se algo está permanentemente a funcionar mal, as
causas desse mau funcionamento são normalmente ligadas a uma condução
incompetente do processo motivacional em curso.
Falou-se ainda dos pressupostos
teóricos que fundamentam as teorias dos objectivos de realização, tão
abrangentes e importantes no âmbito da psicologia desportiva. Mas não se falou
de um, ao qual vou chamar de “Pressuposto 6”:
Pressuposto
6- A principal força motivadora dos desportistas é a vontade de, na sua
prestação, desenvolver e mostrar competência e de evitar mostrar incompetência.
E o que é isto de “competência”? De
que forma devemos definir este conceito?
Antes de mais, peço aos leitores que
tomem atenção ao seguinte: se este pressuposto assume que a principal força
motriz dos desportistas é o desejo de mostrar “competência”, então uma coisa
devemos deduzir: quando estudamos ou avaliamos percepções de competência, avaliamos
percepções SUBJECTIVAS – ou seja, a percepção de competência é a percepção
que uma determinada pessoa tem da SUA PRÓPRIA COMPETÊNCIA.
Escusado será dizer que a percepção
de competência vai acabar por afectar a autoestima, a autoconfiança, o autoconceito,
pelo que saber o que é a percepção de competência, saber avaliá-la e saber
trabalhá-la no enquadramento de um qualquer processo motivacional é bastante
importante para a qualidade do nosso trabalho. Até porque qual será o atleta
satisfeito com o seu percurso e evolução desportiva, se porventura não se
perceba como “competente”?
Mas ainda não respondi à questão da
definição de “competência”. E começo por responder a esta questão referindo que
a definição de “competência” depende da perspectiva do definidor, e das referências
que ele usa como forma de avaliar essa mesma competência. E essas referências
tanto podem ser o próprio definidor (que avalia a sua competência
usando-se a si mesmo como referência), ou as outras pessoas (aqui, a
avaliação da competência é feita através de comparação social, sendo que um atleta, quando compara as suas
características e prestações com outros atletas, está a estabelecer uma
comparação social com os mesmos).
Nos casos em que, em contexto desportivo,
os desportistas avaliam a sua competência através da comparação consigo mesmos,
entre aquilo que são as suas competências e capacidades actuais e as
anteriores, assiste-se a uma percepção
de competência auto-referenciada.
Nos casos em que os desportistas
recorrem à comparação social no sentido de avaliar a sua competência, então
assiste-se a um caso de percepção de
competência hetero-referenciada.
Ora, conforme eu já referi, as
percepções de competência têm implicações no âmbito do trabalho em contexto
desportivo. E a principal implicação é o tipo de envolvimento motivacional
das pessoas com quem trabalhamos no decurso do processo motivacional que
estamos a desenvolver.
E o que é isto de “envolvimento
motivacional”? É basicamente uma espécie de tendência que o sujeito tem de, num
determinado período do processo, estar mais focado na obtenção de um tipo
específico de objectivo.
Em termos teóricos, existem dois
tipos de “envolvimentos motivacionais”, dentro de cada um dos quais podemos, em
função da nossa avaliação, categorizar ou descrever as pessoas com quem
trabalhamos. E não esquecer que a este trabalho de avaliação deve corresponder
um conhecimento presente sobre as IMPLICAÇÕES de cada um destes “envolvimentos
motivacionais”. Sem mais demoras, os dois tipos de envolvimento são os
seguintes:
1)
ENVOLVIMENTO MOTIVACIONAL COM A TAREFA
Definição
É
um tipo de envolvimento no qual o indivíduo, no seu trabalho de
desenvolvimento, define como PRIORIDADE o aperfeiçoamento progressivo ao
nível da sua qualidade de execução da tarefa a realizar.
Ou seja, alguém envolvido com a
tarefa está sobretudo focado em MELHORAR a forma como executa a tarefa ou
conjunto de tarefas propostas, independentemente da comparação dos seus
resultados com os resultados dos outros.
Implicações
→
O indivíduo não dissocia, na sua filosofia de trabalho, o esforço da
competência. A forma como ele perspectiva o seu trabalho e a sua evolução
levam-no a crer que só à custa de muito esforço e de muito trabalho é que ele
atingirá um nível de excelência na sua performance;
→ O foco do seu trabalho centra-se
em MELHORAR a sua performance, independentemente dos resultados obtidos que,
para indivíduos envolvidos com a tarefa, não são mais do que um produto das
melhorias registadas. Resumindo, acredita-se que um trabalho competente de
melhoria da performance irá resultar na obtenção de bons resultados, que serão
tanto mais frequentes quão mais desenvolvidas forem as competências
desenvolvidas;
→ Padrões de comportamento
adaptativos, dos quais podemos sublinhar uma maior persistência no
sentido da superação de desafios, maior persistência face ao insucesso,
a escolha ou preferência por tarefas de treino mais difíceis e desafiantes
e o já referido foco no aperfeiçoamento da qualidade da execução da tarefa,
com o intuito de obter um patamar de mestria na execução.
2)
ENVOLVIMENTO MOTIVACIONAL COM O EGO
Definição
Neste
tipo de envolvimento motivacional, a PRIORIDADE do indivíduo, aquilo que o leva
a envolver-se com a prática, é a possibilidade de SUPERAR os adversários,
vencendo-os.
Os indivíduos que se inserem neste
tipo vão sofrer implicações na sua performance que variam consoante a
percepção de competência por eles apresentada.
Assim sendo, teremos implicações de
dois tipos:
2.1) Implicações – envolvimento com o ego +
percepção de competência elevada
→
Abordagem adaptativa às tarefas de treino a realizar, dado o desejo de mostrar
elevados níveis de performance e resultados em todas as actividades em que se
envolve;
→ Procura activa de desafios e
situações competitivas, de modo a demonstrar superioridade;
→ Vontade de demonstrar níveis de
performance suficientemente elevados no sentido de permitir vencer os
opositores. Para atingir os níveis de performance desejados para este efeito, o
atleta tende a trabalhar com muito esforço e persistência;
→ No entanto, caso esta categoria de
indivíduos consiga demonstrar altos níveis de performance com pouco esforço,
ele não irá despender maior quantidade de trabalho e esforço pois crê que não
necessita disso, pois aquilo que ele trabalha é suficiente para obter os
resultados que deseja.
2.2) Implicações – envolvimento com o ego +
percepção de competência baixa
→
Tendência para a demonstração de um conjunto de comportamentos desadaptativos: evitar
tarefas, evitar desafios, redução de persistência face à dificuldade,
dispêndio de pouco esforço, e em casos mais complicados, o abandono
da prática, especialmente quando o atleta crê que as suas capacidades não
são suficientes face às exigências que lhe são impostas;
→ Tendência a evitar a exposição a
situações competitivas, por força de uma percepção de competência baixa e, por
consequência, ao medo de mostrar incompetência.
Motivar, como se está a ver, é muito
mais do que dar palestras de voz inflamada nos balneários, no sentido de elevar
o ânimo dos jogadores prestes a entrar em campo. Ultrapassa largamente as
lições sobre a mística que um ou outro clube tenha, seja ela maior ou mais
pequena. É por ser um fenómeno tão complexo, que o processo motivacional é
frequentemente mal compreendido, e por conseguinte, não propriamente bem
trabalhado.
Ao abordar o tema das percepções de
competência e dos envolvimentos motivacionais, também procuro chamar a atenção
para o facto de os atletas que trabalham connosco no início de um ciclo
desportivo ou de uma nova temporada não serem “tábuas rasas” de todo um
processo motivacional que também vamos começar – eles já têm uma propensão para
se mobilizarem mais em prol de certos tipos de objectivos em detrimento de
outros.
Não
compreender nem dar-se ao trabalho de identificar estas tendências pode
facilmente conduzir à incompreensão, por parte dos técnicos que lideram a
equipa, do porquê de o atleta A ou B não estar motivado, ou andar pouco
envolvido com o processo. Até parece que “a mensagem do treinador não passa”…
Mas não passa porquê? O que motiva o atleta? Que tipo de objectivos é que o
mobilizam e envolvem mais? Se perguntarmos ao treinador quais os objectivos de
realização que mobilizam cada um dos seus praticantes, ele saberá?
A
única forma de saber como motivar e saber o que motiva alguém! E é necessário
despender tempo para aceder a este conhecimento, fundamental para que o
discurso do treinador tenha o efeito pretendido.
Não
deixo de concluir este artigo com uma recomendação – independentemente das
tendências, da propensão do atleta para se mobilizar preferencialmente para um
dado tipo de objectivos de realização, o treinador tem autoridade para tomar
decisões, nomeadamente no sentido de implementar um processo motivacional
que julgue mais adequado às características e necessidades formativas e
pedagógicas dos seus desportistas. A título de exemplo, quando se trabalha com
atletas de camadas jovens a prioridade deve ser incentivar a obtenção de bons
resultados ou deve dar-se preferência a um envolvimento motivacional mais
centrado na tarefa? E quando se trabalha com atletas de alto rendimento,
passará mais facilmente um discurso mais centrado na melhoria da performance ou
na possibilidade de derrotar os opositores? As respostas dos treinadores a
estas perguntas devem ser procuradas no conhecimento dos atletas com quem
trabalhamos, porque é com base nesse conhecimento que vamos obter
informação que nos permitirá tomar as melhores decisões para o nosso processo
de trabalho.
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