«No momento exacto em que o projecto romanesco nacional, como eco do único projecto social e historicamente significante, tentava dissolver a dificuldade solar da existência no prisma de uma exterioridade redentora, Vergílio Ferreira tomou sobre si o risco de evocar sem temor, sem cansaço a noite humana intacta».Eduardo Lourenço
ISABEL ROSETE |
Falar sobre o Silêncio configura, de imediato, um paradoxo, pois falar, ou escrever, é sempre a interrupção do silêncio, como diria David le Breton. E, bem vistas as coisas, o Pensar não passa disso mesmo. Dir-se-ia que o silêncio é o envolvente universal das coisas, o pano de fundo em que elas se recortam, assumindo a sua condição de objecto. Não é preciso ser dotado de capacidades geniais, ser um contemplativo, um Filósofo ou um monge tibetano para o constatar. A modernidade, porém, com a sua dissolução mediática do mundo, mais do que qualquer outra forma de Cultura, tem horror ao aparente vazio significado do silêncio.
Os Média - em virtude da massificação que em si mesmo incorporam em prol dos índices de audiência - são, aliás, a prova visivelmente irrefutável desta tese: o único silêncio que a utopia da comunicação de massas conhece é o silêncio da avaria, da pausa emergente, da falha técnica, promoventes da suspensão da escuta e da visão, por alguns instantes, nunca aplaudidos pelos espectadores, sempre ansiosos pelo reinício da emissão. O que se instaura é, mais ainda, o cessar da tecnicidade do que o aparecimento de uma interioridade.
O ruído omnipresente, tão característico das sociedades contemporâneas, tornou-se um meio identitário, um modo de se estar ocupado e preenchido, mas não um modo-de-ser do indivíduo. A modernidade abriu caça a todas as formas de silêncio. Exorciza-o, conserva-o à distância, considera-o politicamente incorrecto. Que tremenda ilusão!
Somos incapazes de nos abrirmos a uma aprendizagem serena do silêncio, de escutar as vozes silenciosas da Terra, as vozes ermas dos campos no calor parado da tarde. Perdemos, definitivamente, a serenidade e não somos mais capazes de fruir o riso sem som, de nos determos na escuta, de nos calarmos, de percebermos que até Deus entreabre um olhar no silêncio do campo em ruínas. Enfim, de regressarmos ao silêncio fundamental[1].
Justifica-se, presentemente, a sua fobia, pois a palavra é o único antídoto para as múltiplas formas de totalitarismo que procuram reduzir a sociedade ao silêncio. É a grande estratégia dos políticos, das figuras públicas mais influentes. Mas não usam eles os totalitarismo(s), a palavra como formas de calar a voz dos que ainda escutam os desígnios insondáveis do Ser, da Vida e da Morte? O silêncio deixou de fazer parte da nossa Cultura, e o pensar virgiliano é bem a memória recôndita, mas des-velada, deste estado insuportável da Humanidade.
O silêncio tornou-se um intruso, um abismo no seio do discurso, até mesmo um factor de desconforto, qual circunstância penosa, assunto particularmente impopular nos dias que correm na agonia da demagogia barata que tanto ilude muitas das mentes ditas mais esclarecidas, que comove as massas, sedentas de ouvir qualquer coisa que soe bem, mas, no entanto, incapazes de escutar o ser essencial das palavras-de-origem, esse modo de ser da Linguagem onde a verdade e autenticidade das coisas nascem e são. A situação é, contudo, contraditória: a saturação da palavra, dos discursos eloquentes, mas vazios de conteúdo significante, das mais engendradas tagarelices, induzem, cada vez mais, ao fascínio do silêncio. Ambivalente, suscitam o amor e o ódio.
Ousar falar dele, torna-se um tema provocatório, quiçá, contra-cultural, contribuindo para subverter o conformismo pacóvio, o efeito anestesiante e dissolvente do ruído incessante, que nos impede de ouvir, mesmo a boca aberta num grito[2]. Os nossos ouvidos estão cobertos de lixo orgânico: até mesmo Deus que é um chato, tem sempre uma palavra a dizer; e as nossas casas jamais adormecem no silêncio[3].
O silêncio, todavia, também assume uma função reparadora, eminentemente terapêutica repondo, pelo discurso inteligente - de que obra de Vergílio Ferreira é dos exemplos mais iminentes de toda a Literatura Portuguesa (um bem escasso, aliás) - a necessidade vital de integridade.
Longe do silêncio imperativo, nem que seja por escassos instantes, perdemo-nos nas palavras, ausentamo-nos do fio condutor do crescente labirinto do discurso. Essa infindável imensidão do silêncio rodeia qualquer escrito, qualquer assunto, qualquer existência humana, deixando-lhe exactamente a possibilidade do seu encaminhamento ao longo de uma margem sem princípio nem fim, sem norte, sem destino. Não basta aprender a ouvir. Urge saber escutar! Mas, para escutar o mundo e o outro, é imprescindível saber partir do silêncio. Esta é uma das grandes mensagens do nosso literato-pensador, tal como foi a de Le Breton, tão inspirado na soberba escrita do Silêncio.
Movemos, em exaltação, no interior desta problemática tão inquietante quanto deliciosa, em pensamento/escrita literário-filosófica sobre Vergílio Ferreira, seguramente um dos maiores nomes da Literatura portuguesa contemporânea, celebrando os 100 anos do seu nascimento.
Aqui estamos com este Homem de cepa, de-trás-da-serra, da vertente Sul da Serra da Estrela, imersos na extensa e riquíssima estrada da Vida que nos fez/faz viver de uma forma intensa e soberanamente meditante, sempre em fusão plena com cada acto de escrita que preencheu, sempre, o seu/nosso imaginário em todos os momentos de uma existência quase sobre-humana.
Alicia-nos esse infinito desejo de passar pelos mesmos caminhos trilhados, um dia, pelo autor de O Caminho Fica Longe (1939), eivado de espírito obstinado e indagante, repleto de uma inquietação permanente, preenchido pela dúvida constante, embora não céptica, pela interrogação mais radical, a qual mantém acesa essa pequena brasa viva que alimenta todas as combustões da alma de um cidadão à margem dos rasgos mais intensos “disso” a que se chama “Civilização”, que fez da escrita uma forma de rezar e de respirar, e, da obra, o cunho marcante da sua própria Vida.
Escrever sobre Vergílio Ferreira não é tarefa fácil. Antes de mais, porque nos movemos sempre entre o enigma, o silêncio e o mistério da Vida e da Morte; porque penetramos num espaço onde a escrita atinge os interstícios da Existência, tomada na sua mais pura originariedade, nas malhas da Vida tecidas por fios de intensa solidão, de absurdo, de angústia, de náusea, de sombra, ou daquela triste alegria que, amiúde, faz despoletar um ténue sorriso na face do eterno silêncio do mundo, que assoma em cada acto de pensamento e no fluir da pena que colhe e recolhe os múltiplos arianas do Universo físico e humano.
[1] Cf. Vergílio Ferreira, Para Sempre, pp. 17, 19, 21 e 23.
[2] Vergílio Ferreira, op. Cit., p. 31.
[3] Cf. V. Ferreira, op. Cit., pp. 62 e 65.
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