RUI SANTOS |
Domingo, 17 de Abril de 2016. O Brasil viveu naquele dia um dos seus momentos mais conturbados dos últimos anos. A Câmara dos Deputados votou uma proposta para ter início o processo de destituição da presidente do país, Dilma Rousseff. De forma não secreta, 367 deputados votaram favoravelmente, 137 votaram contra, 7 abstiveram-se e 2 deputados faltaram ao escrutínio. De acordo com o ex-ministro Eliseu Padilha, muitos dos parlamentares levaram familiares para assistirem à votação e alguns deles viajaram em aviões privados a expensas de diversos empresários. Isto não é algo de estranho tendo em conta que cerca de 60% dos parlamentares brasileiros enfrentam acusações de corrupção. O próprio presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, do PMDB, está implicado no esquema de corrupção da Petrobras. Cristão evangélico, Cunha gosta de usar as redes sociais para difundir versículos da Bíblia. «Que Deus tenha misericórdia dessa nação», disse ele antes de votar. É aliás notório o peso da religião na política brasileira o que põe seriamente em causa a laicidade do país. Deus, pátria e família foram os argumentos mais utilizados pelos deputados na hora da votação e, como a História o demonstra, a utilização de tais argumentos em vez da lei constitucional não augura nada de bom para um regime democrático. De igual forma, também o vice-presidente de Dilma, Michel Temer, está implicado no escândalo Petrobras. Quem também tem o seu nome associado é Bruno Araújo, do PSDB, o deputado cujo voto permitiu o avanço do processo. Esta relação entre os deputados e os lóbis está patente na divisão que os brasileiros fazem entre os elementos da Câmara dos Deputados. É comum agrupar os deputados em bancadas segundo os interesses que defendem e não de acordo com os seus partidos. As mais representativas são as bancadas «Parentes» «Empreiteiras e Construtoras», «Empresarial», «Agropecuária» e «Evangélica». As menos poderosas politicamente são a «Sindical», «Bala» (ligada aos militares, polícia e ditadura), «Bola» (desporto), «Saúde», «Direitos Humanos» e «Mineração». De acordo com a Transparência Internacional, uma ONG que anualmente publica o Índice de Percepção de Corrupção, o Brasil ocupou em 2015 o 76º lugar (em 168 países) na lista dos países mais geradores de corrupção – juntamente com Bósnia e Herzegovina, Burkina Faso, Índia, Tailândia, Tunísia e Zâmbia; em 2014 era 69º em 175 países analisados pela Transparência Internacional. Ou seja, a corrupção no Brasil agravou-se nos últimos dois anos A título de curiosidade, refira-se que Portugal ocupa o 28º lugar junto com o Botswana (a Dinamarca lidera a lista como país onde a percepção de corrupção é menor).
Para os defensores de Dilma Rousseff, está em curso um golpe de estado e para os seus opositores é a democracia que está a funcionar. Com posições tão extremadas importa analisar, de forma o mais distante possível, o que está a montante e a jusante da votação da Câmara dos Deputados.
Apontada como sendo quase o oposto de Lula da Silva, o presidente que a antecedeu, Dilma é descrita como sendo rigorosa, pouco flexível, tecnocrata, fechada no Palácio do Planalto e pouco dada a contactos com os deputados ou representantes de movimentos sociais.
Apoiada pelo PT, Dilma Rousseff foi eleita em 2010 e reeleita em 2014 com 51.64% de votos, pouco mais de 3% relativamente ao seu opositor Aécio Neves, candidato do PSDB. Este seu segundo mandato tem sido marcado por uma forte quebra de popularidade entre os brasileiros. Logo após a sua reeleição, Dilma procedeu a aumentos no preço da electricidade e gasolina o que veio agravar as condições de vida num país que vive uma forte recessão económica – a pior crise económica desde os anos 1930 – agravada pela queda do preço do petróleo e isto num ano em que o país é anfitrião dos Jogos Olímpicos. Também ao nível político, a sua popularidade já conheceu melhores dias. Muitos deputados que inicialmente apoiaram Dilma, acusam-na agora de lhes ter diminuído as verbas atribuídas aos seus Estados, além de não ter protegido devidamente os deputados de vários partidos envolvidos no escândalo Lava-Jato. Como se tudo isto não bastasse, o ex-tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, está a cumprir uma pena de prisão de 15 anos por corrupção (condenado em Setembro de 2015). Contudo, os escândalos a abalarem o PT iniciaram-se em 2004 com Waldomiro Diniz ao receber subornos para campanha eleitoral do PT de 2002. Lula, com a sua diplomacia e habilidade política conseguiu sobreviver aos escândalos do seu partido mas Dilma parece não dispor da mesma capacidade.
A base de sustentação da presidente brasileira assentava em 9 partidos políticos – PT, PP, PR, PSD, PDT, PC do B, PROS, PMDB e PRB – mas dois deles, PMDB e PRG, abandonaram recentemente a coligação. Por diversas vezes o PMDB adiou uma decisão sobre romper, ou não, a sua aliança com o PT. A decisão final ocorreu depois de a economia ter piorado, das novas ações da Operação Lava Jato e da tentativa de nomear o ex-presidente Lula da Silva como ministro-chefe da Casa Civil para assim se furtar a prestar contas na justiça brasileira ao garantir imunidade diplomática.
A votação mostrou que actualmente só o PT e o PC do B apoiam incondicionalmente Dilma e a eles juntou-se um outro partido político, o PSOL. Dos 27 estados que constituem o Brasil, só três, Amapá, Bahia e Ceará, votaram maioritariamente contra.
Mas afinal de que é acusada Dilma Rousseff? Os seus opositores acusam-na de ter promulgado seis decretos suplementares, que aumentaram a despesa pública, sem ter orçamento para lhes dar provisão e que foi Dilma que atrasou uma transferência de verbas para o Banco do Brasil cuja finalidade seria o pagamento da linha de crédito agrícola Plano Safra. Uma vez que o Banco do Brasil teve que pagar com recursos próprios, os opositores de Dilma consideram que com isso a presidente manipulou as contas públicas e obteve um empréstimo de um banco estatal, o que é proibido pela lei brasileira. Estes factos, além de terem contribuído para manipulação orçamental, aumentaram a despesa quando o défice orçamental já tinha sido estabelecido, e além disso, não tiveram autorização do Congresso. Por sua vez, os defensores de Dilma alegam que no primeiro caso Dilma assinou os decretos por solicitação de órgãos judiciais e do Tribunal de Contas da União, após pareceres técnicos que avalizavam a situação. Como tal, mesmo que existisse algo de errado no processo, a presidente não teria agido de má fé, e, portanto, razão para a sua destituição. No segundo caso, a defesa de Dilma alega que os incumprimentos financeiros não configuram empréstimos mas sim atrasos de pagamento. O Tribunal de Contas da União ainda não se manifestou sobre este tema pois ainda não analisou as contas do Governo referentes ao ano de 2015. Numa coisa, opositores e defensores estão de acordo: ao contrário da destituição de 1992 a Fernando Collor de Mello, Dilma não é acusada de apropriação indevida de dinheiro para proveito próprio.
Caso isto se passasse em Portugal, tenho a certeza que a ideia de estar em curso um golpe de estado não aconteceria. São as idiossincrasias da política brasileira que geraram toda esta confusão. E porquê? Para ocupar a presidência, Dilma teve que negociar com vários partidos e atribuir aos seus militantes diversos cargos. Ofereceu a vice-presidência ao PMDB e a Michel Temer e de acordo com a lei brasileira, se a presidente for afastada, quem a substitui é o vice-presidente e não alguém do seu partido, o PT. Dilma acusa agora Temer de querer tomar o poder sem a legitimidade do voto popular.
Para simplificar, seria como se em Portugal, no anterior governo, Passos Coelho fosse demitido e o poder fosse entregue a Paulo Portas. Ora isso, segundo a lei portuguesa é impossível. Ou o partido vencedor nomeia um outro político, ou são convocadas novas eleições. Pois no Brasil não se passa isso. O que está a causar todo este turbilhão político é algo que está previsto na constituição brasileira. Só agora é que repararam nesse pequeno grande pormenor. Um partido pode chegar ao poder sem ter sido o vencedor. Contudo, e ressalvando as devidas distâncias, também só em Portugal é que recentemente os políticos se aperceberam que nem sempre o mais votado é quem governa mas sim quem tem o apoio parlamentar.
A política brasileira é de tal forma estranha aos nossos olhos que o conceito de «janela partidária» parece-nos algo surreal. A «janela partidária» é como o mercado de inverno no futebol: a meio da época troca-se de lugar. Um exemplo perfeito para ilustrar isto é o caso do Partido da Mulher Brasileira (PMB). Este partido foi o que mais parlamentares perdeu na «janela partidária» após as últimas eleições presidenciais. Há um mês, o PMB tinha 19 deputados e na sexta-feira que antecedeu a votação na Câmara dos Deputados, dia 15 de Abril, tinha somente 2 deputados. No dia da votação já só tinha 1 deputado. Todos os outros transitaram para outras forças políticas. Basicamente, é um desrespeito pelo voto popular. O número de deputados que cada partido conquista nas eleições pode sofre alterações durante a legislatura. Se fosse troca por troca, mantendo o número de deputados já era em si estranho. Assim é completamente inusitado.
Agora, Dilma Rousseff pretende propor uma emenda à Constituição para dessa forma tornar possível a realização de eleições antecipadas. Esta é uma situação que deveria ter acontecido há muito tempo mas os interesses políticos e económicos assim a impediram. Contudo, Dilma enfrenta um problema nesta sua iniciativa para garantir o poder, seu e do PT. De acordo com o artigo 60 da Constituição brasileira, esta «pode ser emendada mediante proposta» do Presidente da República; de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado; de mais da metade das Assembleias Legislativas estaduais – que se devem manifestar, cada uma delas, pela maioria relativa dos seus membros. Caso a proposta seja aprovada nesta fase, é criada uma comissão especial na Câmara dos Deputados para analisar seu conteúdo. De seguida, a proposta deverá ser votada na Câmara dos Deputados em duas fases, com um intervalo de cinco sessões entre cada votação. São necessários pelo menos 308 votos (ou seja, 60% dos deputados) nas duas ocasiões para aprovar a proposta. Caso seja aprovada, a proposta de alteração constitucional segue para o Senado, onde deverá passar pelos mesmos procedimentos. Se não houver nenhuma alteração no texto, a proposta é promulgada pelas duas Casas do Congresso Brasileiro e entra em vigor. Em caso contrário, ela volta para a Câmara para ser votada novamente. Como o processo é complexo, não há como prever a eventual duração.
E assim vai o Brasil, um país onde a população já perdeu a esperança nos políticos. Mesmos os que criticam e contestam nas ruas Dilma Rousseff afirmam que «quem vai para lá é tão mau como quem lá está» conforme afirmou ao jornal «Folha de S. Paulo» uma manifestante opositora ao governo.
Tudo seria mais fácil e transparente se o modelo institucional brasileiro fosse alterado. Em casos semelhantes, e desde que houvesse apoio no Câmara e no Senado, as duas instituições do Congresso do Brasil deveriam aprovar a substituição do presidente por outro político do partido vencedor das últimas eleições ou então, a realização de novo sufrágio eleitoral.
Agora, o Senado brasileiro, presidido por Renan Calheiros do PMDB e envolvido no escândalo Petrobras, vai votar por volta do dia 11 de Maio, a destituição de Dilma Rousseff e o sentido de voto dos senadores indicia que a destituição ocorra. De um momento para o outro, o PMDB irá liderar o Brasil, na Presidência, no Senado e na Câmara de Deputados sem ter sido o partido mais votado nas eleições. Golpe de estado? Não creio que seja motivo para tanto. Segundo a mais recente edição do Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, golpe de estado ocorre através de «uma operação de força que suspende violentamente as regras constitucionais» e não foi isso que aconteceu no Brasil. Penso que a utilização dessa terminologia é reflexo do carácter emotivo do povo brasileiro como ficou patente no tom com que os diversos elementos da Câmara dos Deputados expressaram a razão do seu voto. Apesar de tudo ser feito legalmente, cumprindo a Constituição do Brasil, é um «golpe de estado» no sentido de que o poder transita do partido mais votado para outro, neste caso o terceiro (PMDB) com mais votos nas eleições de 2014 (o segundo mais votado foi o PSDB).
Pode-se ter a tentação de estabelecer comparações com a situação ocorrida recentemente em Portugal mas isso não tem fundamento uma vez que os regimes são diferentes e no caso português, assenta em maiorias parlamentares. Embora a situação brasileira esteja a ser resolvida legalmente e cumprindo a lei do Brasil, não deixa de ser uma legalidade «estranha» aos princípios democráticos e que carece de uma profunda reflexão por parte dos brasileiros.
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