HELDER BARROS |
Estávamos em pleno Verão quente, na política e na meteorologia. Era setembro de 1975, começavam os primeiros lavradores a esgalhar a poda, os prematuros, aqueles que mal concluída a colheita, atacavam, sempre que podiam, as vides ainda vestidas de folhas pujantes, intercaladas com algumas de tom mais carregado. Principalmente, nos quintais à volta das casas, gostavam daquela limpeza, de impor a sua marca no seu território. Mostrar à vizinhança quem fazia o trabalho andar, quem tinha a quinta trabalhada como um jardim. Matias, o mais famoso podador da freguesia e arredores, dado que os seus serviços eram altamente requisitados, aguardava que o começassem a chamar de todos os lados, para as podas de videiras e de todo o tipo da árvore, tratava-se do melhor podador que se conhecia, por estas bandas.
Quando começava, no meio da confusão de escadas de madeira, artesanais, sobressaia a voz estridente de Matias, sempre muito falador, ele tinha o respeito dos outros lavradores que lhe atribuíram o epíteto de mestre da poda. Assim, todos queriam ouvir as suas dicas sobra a técnica da poda. Enquanto podava, Matias ia dizendo: “Uma vara, corta a segunda, duas varas, corta a terceira e ata no arame!”. Mas, o melhor era, quando Matias desatava a filosofar (senso comum), sobre a origem da poda: “A poda foi inventado por um burro, é a coisa mais fácil, trata-se de saber ler os troncos e as varas, o que já deram e o que poderão dar, mas isso, qualquer burro faz”, e rematava, normalmente, com a seguinte frase: “No tempo em que as galinhas falavam, como agora, um moleiro atava a sua mula a uma oliveira, enquanto ia para o moinho trabalhar e um dia, deixando a corda mais lassa por descuido seu, reparou que a sua mula aparou parte de uma grande videira. Pensou que esta nada iria produzir nesse ano, mas para seu espanto, a videira deu mais e maiores cachos. Moral da história: começou a aparar todas as suas videiras e a aperfeiçoar a sua técnica. Assim nasceu a poda e todos os seus benefícios na produção vitivinicultura. Primeiro foi considerado louco, para a eternidade ficou um génio anónimo, à custa da Mula Russa!”.
Matias era um homem muito conversador, opinava sobre tudo e sobre todos. Se o assunto era sobre algum problema que envolvesse alguma complexidade, o Matias se não tivesse nada substancial a acrescentar, logo aventava: “Esse problema é como na poda: tira lenha velha, fortalece a nova, espera que rebente bem e toca a tratar da ramagem: poda verde, para que o cacho ganhe cor…”. Por mais complicado que fosse o problema, com a analogia do processo da poda, Matias tudo parecia explicar. E Matias sempre a falar nos benefícios da poda mais acrescentava: “A lenha da poda que se pode apanhar, deve ser enrolada, em pequenos montes, o mais apertados possível e aproveita-se este material combustível, que servirá para acender a lareira. Na natureza tudo se aproveita, até as folhas das árvores quando caiem servirão de estrume para o solo produzir mais e melhor.”. Matias era um Senhor, sempre alguém a consultar na freguesia para a resolução de qualquer problema, fosse qual fosse a sua natureza.
Certo dia, um carro de bois carregado de lenha virou, porque uma das sua rodas se soltou, caindo parte da carga. Matias ia a passar e logo tentou ajudar a resolver o problema. É fácil, diz Matias: “tira-se a lenha a mais como na poda e aliviam-se os animais soltando-os do estribo, como se soltam as varas das vides naturalmente, aquando da produção.”. Todos meio atarantados com a explicação, seguiam as ideias do Matias, tal o hábito de o escutar como homem avisado e conhecedor da vida, estava para o povo da freguesia, num nível superior ao conhecimento de senso comum. Ele era o Mestre podador, ensinou a muitos a sua técnica ancestral, que tinha aprendido com o seu pai, o Sr. José das Pedras Grandes.
Certo dia, uma moça solteira da freguesia engravidou, sendo que, o moço que lhe fez o serviço, era de uma freguesia distante e fugiu para o estrangeiro, não querendo assumir as suas responsabilidades. Assim, a moça muito nova, ficou como dizem os espanhóis, embaraçada, o que lhe provocava muita vergonha e aflição. Naquele tempo, uma mulher solteira que engravidasse antes do casamento, era imediatamente apontada como que quase proscrita, ou pessoa sem moral e decência. Ora, como o presumível pai tinha fugido, tínhamos aqui um cenário muito negro, para a Aninhas do Alto Seco. Logo esta e a sua família trataram de pedir conselhos ao Tio Matias, o Mestre podador, para obviar este drama familiar que ocorreu na freguesia. Naquela altura o sentido comunitário era bastante arreigado, pelo que um problema de uma família, também o era para a comunidade local – a Freguesia. Imbuido da sua capacidade decisória, o Matias tratou de arranjar um rapaz solteiro, que fosse bom para o futuro da rapariga e da criança. A solução foi convencer o Zé da Prensa, rapaz quase na casa dos trinta, que nunca conseguiu arranjar namoro pela sua timidez, algo manso como se dizia na aldeia, mas sendo uma pessoa plena de virtudes - trabalhador, poupado e com juízo -, encaixava perfeitamente no perfil que Matias considerou primordial. E lá justificou o Matias, a sua escolha aos noivos, família e vizinhos, ao jeito da poda. “Sai uma vara podre, ficam duas varas boas, a produção ficará garantida, ninguém ficará prejudicado, sairão todos a ganhar e assim, a vinha que é esta freguesia, produzirá tranquilamente muita e boa uva.”.
Numa altura em que até as podas estão a ficar automatizadas, fica aqui o retrato de um personagem que foi muito importante na nossa agricultura tradicional, o podador. Nas tardes de outono e nas manhãs de inverno, era um gosto ouvir as tesouras da poda a cantar só silêncio do vale da Ribeira de Fregim: “Tric, trac, tric, trec, trac, tric”. Sinal que andaria por perto um rancho de podadores, ou um ou outro podador isolado, na sua labuta solitária. Normalmente, davam excelentes figuras icónicas, numa tarde cinzenta um podador a subir e a descer escadas de madeira, a cortar e a atar videiras. Faz tudo parte de um passado a que assisti na sua fase final, em que os velhos lavradores eram mestres podadores. Não é saudosismo, é apenas uma modesta e singela homenagem a tantos homens que podaram, repetidamente, ano a ano, ciclo a ciclo, centenas de videiras. Tratava-se de um ciclo de trabalho agrícola que começava com as podas e seguia num ritmo natural e ainda humano, terminando com as, qual ciclo da vida! Hoje em dia está tudo muito mais mecanizado, ainda bem, mas não posso esquecer a dureza e ao mesmo tempo alegria, desses tempos que envolviam ajuntamentos como as vindimas, com a presença de seres, quais ícones de um ambiente bucólico ancestral. Em Espanha, em pleno século XXI, parece que se importa mão de obra escrava para trabalhar nas colheitas… isso é um retrocesso civilizacional!
Matias era assim muito respeitado na freguesia e arredores, tratava-se de um conversador nato, de um homem que libertava energias positivas por todos os lados. O seu discurso era sempre no sentido de ajudar e resolver problemas, sem vaidades e sem petulâncias. Por isso era adorado por todos, era uma pessoa muito acessível. Gostava de discutir sobre as práticas agrícolas, principalmente nas inovações que iam surgindo. Era um homem que gostava de estar atualizado, que procurava estar atualizado. Foi dos primeiros a introduzir a sulfatação motorizada. As lavoiras mecanizadas com a cava e fresa das terras através de trator. Falava nas vindimas e nas podas mecanicas, todos o escutavam com curiosidade e espanto. E estava certo, pois foi rápida a automatização agrícola, também aqui em Amarante, no minifúndio. Dizia Matias que a agricultura em breve seria como uma fábrica, qual linha de produção em série. Não será bem assim, mas estamos próximos disso. Só ficava triste pois pressentia que a mão de obra iria ser deduzida ao mínimo. Para ele o trabalho agrícola em comunhão, era muito mais fácil e produtivo, mas tal, iria acabar. Alguns incrédulos diziam: “O Tio Matias, acha mesmo que a poda e a vindima vai ser mecanizada”. “Não acho tenho a certeza, eu gosto de ler coisas da agricultura, embora só tenha a quarta classe, foi das antigas, só tive pena de não poder estudar mais.”. “O patrão do meu Pai ainda o tentou convencer, mas o meu Pai disse que o meu futuro era o trabalho… coitado, foi educado assim, não posso levar a mal, Deus o tenha ao seu lado que era um homem bom, educou-me como foi educado, pensando ser o melhor para mim!”.
Segundo a Fotobiografia “Na sombra de Pascoaes” de Maria José Teixeira de Vasconcelos, o Pai do Grande Poeta de Amarante e do Mundo (Teixeira de Pascoaes), foi a pessoa que introduziu a poda em Amarante, tendo os caseiros ficado incrédulos e assustados com a experiência que, João Vasconcelos, decidiu empreender. Tratava-se de uma pessoa desiludida com a Política, após o regicídio e que, depois uma vida inteira ligada à causa publica, um monárquico dos sete costados, decidiu refugiar-se na Quinta de Pascoaes a gerir os trabalhos agrícolas. De facto, Amarante tem uma enorme tradição agrícola, que urge relevar no âmbito regional, nacional e mundial, impondo a marca “Amarante”, no produto de excelência que produzimos há muitos anos, o nosso precioso néctar, que tem fama de cariz mundial. E é terra de excelentes produtores agrícolas, com maior ou menor mecanização. Os lavradores que tivemos no passado, esses bravos homens, deixaram um legado que com mais máquina, menos máquina, teremos que respeitar através do desenvolvimento da atividade agrícola. O pai de Teixeira de Pascoaes chama-se: João Pereira Teixeira de Vasconcelos, Comendador e o povo adorava-o.
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