CRÓNICA DE MANUELA VIERA DA SILVA |
«(...) A felicidade é um contínuo evoluir do desejo, de um objecto a outro; o atingir de um objectivo é, desde logo, o caminho para o próximo. A causa disto é que o objectivo do desejo humano não é ser feliz apenas uma vez, e por um instante; mas assegurar para sempre o caminho do seu desejo futuro.» Hobbes
As pessoas livres de pensamento, que não se subjugam a qualquer tipo de ditadura, procuram apoiar as suas convicções de liberdade, justiça, igualdade onde se sentem melhor, para aí ganharem as forças necessárias e hercúleas numa luta imparável e quase cega, a fim de manter a visão clara e não contaminada das ciladas psicológicas e emocionais quando a acção sopra a chamada.
Um dia tive a ousadia de responder ao meu pai que devia ter nascido homem, quando ele me perguntou porque é que eu trabalhava tanto, e não ter tempo para o ir visitar mais vezes. Entendia que uma mulher deveria ter uma vida calma, sobretudo ligada à casa, e não a viver sempre agitada, sem horários nem fins-de-semana. Como trabalhadora independente a trabalhar numa assoalhada da residência, transformada em escritório, por mais disciplina que tivesse, a tentação era despachar o trabalho pendente antes de chegar um novo, e só me predispunha a sair à rua quando tinha mesmo de sair, fosse pelo trabalho ou por assuntos domésticos.
Compreendi a mensagem do meu pai, mas penso que ele não compreendeu a minha. Poucos homens compreendem esta secreta e profunda vontade da mulher de ser independente e autodeterminada. É difícil e penoso conciliar o trabalho, as lides domésticas e dar apoio à família. Mais difícil se torna quando a mulher tem de se afirmar no trabalho onde tanto os preconceitos como os assédios continuam ainda a ser visíveis. Um homem, por ser homem é livre, casado ou não. É uma liberdade instituída, enraizada. (Não gosto particularmente de chamar machista, talvez pela carga de agressividade que a palavra contém, que me faz lembrar as lutas dos machos no reino animal. O curioso é que estas lutas nos animais são quase sempre entre machos e raramente entre machos e fêmeas.) A sociedade aceita, é tradição. Quanto à mulher, a situação é confusa actualmente. Parece estar numa fase de transição. Apesar de a «revolução sexual» no Ocidente ter começado nos anos 60 do século passado, em Portugal apenas começou nos anos 80. Porque será que Portugal tem de estar atrasado em tudo 20 anos em relação ao resto da Europa?
Escolhi uma profissão (revisora editorial) para que a pudesse exercer em casa, exactamente para que, quando o marido chegasse do emprego, deixasse de haver discussões porque o jantar não estava ainda pronto. Mas a maioria das mulheres trabalha fora, passa horas nos transportes, faz o horário do emprego, às vezes horas extraordinárias, chega exausta a casa e ainda tem as lides domésticas para cumprir.
Trabalho desde os 14 anos, com um percurso intermitente nos estudos. Terminados aqueles com sucesso, fui melhorando com o tempo no tipo de empregos, até me decidir a aventurar-me a trabalhar por conta própria. Ensinaram-me em casa que quem não trabalha não come. Os irmãos mais velhos, a trabalhar, tinham de entregar o ordenado aos pais para ajudar a alimentar os irmãos mais novos. Impossível, na minha visão, viver sem trabalhar. (Pudesse eu chegar à idade de uma suposta reforma para poder ler todos os livros que ainda não li, mas até esse prazer penso que me vão retirar.) Se calhar é por isso que a sorte foge aos pobres, vivendo sempre preocupados com o dia de amanhã.
Não é o dinheiro que tiro do trabalho o mais importante, é a auto-realização, o sentimento de ser útil à sociedade, e a mim própria através do que me proporciona o dinheiro, não ficando dependente do marido para comprar umas meias. É a concretização do dever de ser responsável por mim mesma, em toda a dimensão humana, que me traz a alegria de viver numa abertura de espírito condutora de paz interior, na satisfação de coisas simples e básicas, que, por sua vez, disponibilizam uma abertura do pensamento e do olhar numa outra perspectiva – todo o manancial lúdico e natural que está ao meu dispor e me aguarda: música, leitura, cinema, natureza, arte…
Fico perplexa ao ver as notícias sobre a crescente violência doméstica que continua a aumentar diariamente. Tomara que fosse apenas porque essas mulheres (vítimas de violência) se tivessem tornado independentes e, pensando de forma ingénua e simplista, que os maridos não tivessem suportado a «concorrência». Pode ser, adicionando o facto de que a mulher está a aprender a ser livre, não o sendo ainda. Falta estabilizar as forças, por um lado, a do homem, que tem de aprender a conhecer a mulher, de olhar para ela como um ser igual a ele, com as mesmas necessidades e anseios, por outro, a da mulher, que tem de aprender a ser feminina e activa, com o recato a que se deve dar, não querendo substituir-se ao homem. «Todos iguais – todos diferentes» é um slogan que se encaixa muito bem nesta área também. A aceitação no respeito por si próprio e pelo outro.
Ambos precisam de se afirmar perante o amor que os une, e não perante o ordenado que recebem.
Ambos precisam de respirar o mesmo amor que os envolve, e não respirar tanto os amigos que atrapalham esse amor.
Ambos precisam de sentir uma auréola de harmonia e de paz, e não sentir as vibrações de emoções alheias que fazem desviar o caminho de um projecto de vida a dois.
Vencer na vida não é o sucesso visível na aparência material, é a plena alegria na realização da paz e serenidade do crepúsculo do sol e no descanso do luar. Saber dosear a luz e a sombra, a alegria e a melancolia, o riso e a lágrima, fazer da finitude da vida o infinito numa flor.
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