segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

MATER NATURA

 [i]
ALVARO GIESTA
[Tendo por base o ensinamento colhido no conto LADINO, de Miguel Torga - e eu digo “ensinamento” (ou “lição”, tanto faria) e não “inspiração”, porque “tal coisa”, sejam “ajudas” de deuses ou deusas, de ninfas ou Tágides, ou quaisquer outras divindades inventadas ou por inventar, ou quaisquer outros “sopros” de vivos ou mortos ou de noites de insónia, de luar ou sem lua, considero que não existe(m) - talhei este MATER NATURA com um pardal irmão do de Torga, embora sendo este sem nome de baptismo. Também neste conto - tanto o pardalito como a mãe-pardal, tal qual o “Bigodes”, gato astuto mas com coração - as características humanas necessárias, ou talvez mais que as de certos humanos, no essencial da acção e da intenção subjacente à personificação: a base do conto.]
________





«Para ele o mundo era um quintal enorme dotado de compartimentos
separados por água, e fenómenos como as chuvas, as tempestades,
ou mesmo os ódios dos homens carregados em navios enormes,
eram gotículas para qualquer sorriso desfazer.»

Ondjaki, “E se amanhã o medo”
________

Fotografia: Ana Maria Russo
 (http://www.1000imagens.com/autor.asp?idautor=936)
O pardal, pequenino, cheio de medo à beira do ninho, no beiral daquele telhado, ensaiava o seu primeiro voo. Espreitava… “ui mãe, tão alto, que medo!”.

E aquela mãe teimosa saltitava de telha em telha – a telha vã daquele casebre velho e já sem vida – espanejando as asas sob o calor forte do sol que se começava a sentir. E depois para o ramo da laranjeira mais próxima que se erguia no quintal. Todo o dia naquele fadário. “Anda filho, vem… não tenhas medo. Vê… é fácil! Não custa nada!” – encorajava a mãe. E ensaiava mais um voo animador. O centésimo, ou mais…

Mas ele, o filhote e medricas pardal, a quem também o pardalão pai não conseguia demover daquele medo incompreensível, recolhia ao aconchego do ninho e ali se deixava ficar a dormitar no quente e fofo das macias penas que o atapetavam. Os seus dois irmãos, esses, há muito haviam partido e se tinham feito à vida. Arrojados e intrépidos! – “Saíram à mãe, que não ao pai, que nestas coisas de coragem ela sempre fora mais ousada; mesmo quando se tratava de roubar algum painço que a avó Ana Proença deixava a secar nas lajes de granito do balcão da casa”. – Recordava ela.

Porém, mais forte que o medo e na ânsia de partir também na conquista de novos mundos, lá se abeirou, mais uma vez, da borda do ninho naquele dia primaveril já quase no seu fim. O pardal ainda não sabia voar. Espreitou lá para baixo… abeirou-se mais… mais um pouco e, por distracção, mais do que aventura, caiu desamparado nas lajes daquele pátio onde o velho “bigodes” – gato pardo e manhoso – há muito cansara o occipital de tanto olhar para cima enquanto, ávido, lambia os beiços e cofiava os compridos e rebeldes bigodes. Veio aos trambolhões, desajeitado, esquecendo-se de bracejar as asas para sustentar o frágil corpinho no ar.

A mãe pardal, em gritos aflitivos, bem alto, advertia: “Abre os braços, filho… bate as asas, bate…”. Mas lá acabou por se estatelar nas lajes cimentadas do pátio, que os gritos da pobre mãe, desvalida, lhe não valeram de nada. Apercebendo-se do perigo eminente que representava o velho gato que, pé ante pé ia avançando para o coitado, ainda entontecido pelo tombo, encorajou a pequena avezinha a fugir: “Anda, meu pequenino… vamos… voa, faz assim…”. E lá ensaiava o pardalinho mais uma vez, e outra, e outra ainda, mil formas desajeitadas de levantar voo. Mas nada! E o velho gato pardo parece que usou a cabeça – ou talvez o coração, coisa que já é hoje difícil os humanos fazerem – e, cabisbaixo, arredou pé dali quando já se adivinhava uma morte infausta e inglória.

Veio a noite e com ela o frio que já se torna difícil qualquer humano suportar nestas terras transmontanas, quanto mais um pobre animalzinho meio guarnecido de penas. O pardalinho, encolhido, ao pé de uma couve-galega que crescia preguiçosa no quintal, para onde se arrastou com passitos tímidos, lá ia sendo alimentado pela mãe pardal que se ausentava a espaços breves em busca de gramíneas, enquanto o lusco-fusco da noite ainda alumiava o fim do dia. Fechou-se a noite e ficou mais frio. “Mesmo na primavera, fora do ninho e do aconchego das asas da mãe, gela-se!” – pensava preocupada a mãe. Ela, toda a noite voou numa dobadoira incessante, em angústias e receios incontidos, em redor do pequenino que esperou… esperou – e tão ingenuamente... – que lhe viesse a salvação.

Morreu de madrugada, transido de frio, com a mãe a esvoaçar-lhe por cima. “Piu… piu… piu… reage, meu filho, que o dia está a chegar!” – a mãe em queixumes doloridos. “A Mãe-Natureza, pródiga, perfeita e sábia ainda sem soluções”.


[i] conto publicado em 30/08/2006 em ARTESANIAS LITERARIAS (revista literaria del espacio planetario), Argentina e, no mesmo ano em http://www.sergipe.com/balaiodenoticias/mater.htm.

Sem comentários:

Enviar um comentário