ANABELA BORGES |
A página em branco dizia o silêncio.
Mas depois pensou melhor. E não. A página em branco não dizia o silêncio. Dizia o grito.
Era um branco de partida, não de chegada; um branco de revolta, não de paz; de início e meio, não de fim.
Observou-a ainda por mais alguns instantes, instantes demorados, que talvez fossem horas. O branco da folha trazia-lhe a apatia, a recusa ao pensamento. Pegou-lhe, fitou-lhe o espectro liso, passou-lhe os dedos pelo corpo branco e largou-a – vezes sem conta. E a folha em branco continuava branca e impassível.
Lembra-se de uma recente crónica de António Lobo Antunes:
“Eu, para trabalhar, primeiro sento-me (…).
Depois fico à espera. Depois ponho o bloco à frente.
Depois continuo à espera. Depois apanho uma esferográfica ao acaso de uma das canecas. Depois continuo à espera. Depois aparece uma frase confusa. Não lhe ligo. Depois a frase confusa começa a perder palavras.
Depois, quando já tem poucas, informa-me
- Podes começar”.
Tentou focar a atenção no grito que a folha estivesse para dizer, e começou com a tinta preta, indelével, a juntar sílabas, a formar palavras.
De novo, a voz de Lobo Antunes:
“Há momentos em que escrevo como se levitasse, há momentos em que o material se arrasta”.
No princípio, não era um grito agudo, espicaçado, relutante. No princípio, eram palavras normais, mais ou menos suaves, mais ou menos lisas.
Depois, o discurso continuou a fluir, a fazer-se texto, e a página em branco foi conseguindo, enfim, revelar o grito que trazia aprisionado.
Dizia que os homens já só usavam de forma fútil as folhas em branco, já só se interessavam por reproduzir palavras polidas – tantas vezes reproduzidas – palavras que se gabavam de serem politicamente correctas; frases feitas.
E a folha queria o grito. Queria que dissessem que o mundo não é esse lugar adormecido, formatado e sem estrondo. Que dissessem que o mundo é um revés de tudo o que o compõe, e que onde de um lado há equilíbrio, do outro há o caos. Um mundo que rejeita os seus filhos, que os amassa e destrói como lívidas folhas de papel, como a folha de papel em branco que não queria mais ser uma folha de papel em branco.
A folha queria que o grito dissesse que de um lado do mundo anunciam-se números em rating – em alto regozijo – mas que noutro lado do mundo rasteja-se por uma gota de água. Que num lado constroem-se edifícios altos, espelhados, enquanto do outro lado tudo se desmorona e se faz pó. Queria a folha que dissessem que, enquanto à noite famílias se reuniam nos seus lares, outros andavam numa jorna migratória a fugir dos lugares a que um dia tinham chamado “lar”. E enquanto um menino na escola pudesse ler folhas recheadas de palavras mais ou menos polidas, a outros meninos eram recusados cadernos com folhas em branco para registarem as primeiras letras.
“Puxem pela imaginação!” – a professora dizia. Como se a imaginação estivesse pronta-a-servir e se levasse para qualquer lugar, um qualquer prêt-à-porter.
A menina não gosta que lhe peçam para puxar pela imaginação, que use a inspiração – o que é isso de ins-pi-ra-ção? Laivo? Raio de luz? Flashes de inteligência? Luminescência?
Não sabe o que é. Porque tantas vezes jorra a tinta da caneta no correr quente dos dedos e outras vezes não há nada – é tudo vazio e desolação, um campo de novo ou de velho, sem talho nem feição,
“Há momentos em que escrevo como se levitasse, há momentos em que o material se arrasta”.
Não sabia o que era isso da inspiração. Talvez porque tivesse consciência de que folhas em branco não se escrevem assim do-pé-para-a-mão.
E ainda Lobo Antunes:
“E depois a pergunta, a que não respondo nem me interessa responder: de onde vem isso tudo? Claro que tem de vir de dentro de mim, mas como? Não procuro resposta. Aceito”.
A folha em branco quis mostrar que não era fácil ser uma folha em branco. Que era preciso mais do que palavras polidas. Era preciso o grito, para que se sentisse uma folha verdadeiramente preenchida e livre.
*****
Foram citados fragmentos da crónica “Acerca dos Livros”, de António Lobo Antunes; In: Visão, N.º 1248, 19/1 a 25/1/2017.
Uma crónica exemplar apoiada noutra crónica exemplar. De facto, numa folha de papel em branco, cabe o mundo inteiro.
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