Direito à vida, à morte, à liberdade?
TEXTO DE:
Ana Filipa Ferreira
(Escola Secundária de
Amarante,
12º ano, Curso de Ciências e Tecnologias)
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Se te dissessem que esta noite és imortal, acreditavas? Se hoje tivesses todas as certezas sobre a vida, se soubesses que ela não poderia fugir de ti, o que farias? E se eu te disser que, esta noite, tens o controlo do mundo nas tuas mãos, que esta noite está congelada, que o tempo parou, e que o mundo parou, para ti. Digo-te para acreditares, vejo-te como um anónimo, não te conheço, nunca te vi, mas quero dizer-te isto, quero fazer-te acreditar no que eu acredito. Digo-te, com toda a certeza, que o mundo é teu, e que a noite está parada para ti. Tens uma noite para fazer toda a tua vida valer a pena. E se tu me respondesses que o controlo do teu mundo está na minha mão? Se me dissesses que sou eu quem tem o poder para fazer a tua vida valer a pena? Que tenho o código secreto de acesso à morte. Eu, ou qualquer outro humano frio o suficiente para te conseguir perceber. Contas-me a tua história. Eu sento-me. Dizes-me que tens dois filhos. Fortes. Dois filhos fortes, como tu talvez não consigas ser. Dizes-me que esta noite não te pertence, como nenhuma outra. Dizes-me que o teu filho mais velho casa hoje e a noite é dele. Dizes-me que os 86400 segundos do teu dia são passados entre quatro paredes, entre quatro velhas e feias paredes, preso a uma cama. Que não estás presente na noite do teu filho. No dia mais importante da vida dele. Contas-me sobre o acidente, que, por sorte, dizem eles, não te matou. Não sou capaz de te responder. Podia fazer de ti um coitadinho, podia dizer-te que lamento, mas que a vida é sempre o bem mais precioso, podia dizer-te que tens de te focar nas coisas boas da vida, como o crescimento dos teus filhos e um dia netos. Podíamos chorar juntos. E eu bem que queria chorar. Não por ti, mas por mim. Porque acredito verdadeiramente que tenho o mundo nas minhas mãos e no final fico com o meu mundo nas mãos, deixo que a rotina, o dia-a-dia, me canse ao ponto de não ser mais eu. Deixo que a sociedade com toda a sua futilidade me distraia de pensar nas pessoas como tu. Que poderiam ser eu. Ou eu que poderia ser tu. Mas não vou ser hipócrita. Não te sei explicar porquê a ti, porquê tu, quando eras tão boa pessoa. Não sei se eras ou não. Mas não quero saber. Dizes-me que há já 14 anos que não dormes com a tua mulher, há 15 que não andas de mota, há 16 que não vais ao estádio ver o teu clube e há 17 que não sorris. Perguntas-me se acho que é castigo pelos teus grandes pecados da juventude. Não sei. Respondo-te assim, inconformada. Perguntas-me o que admiro nas pessoas. A sinceridade, que sejam o que são, sem problema algum. Que sejam boas ou más pessoas, mas que sejam elas próprias, livres dos estereótipos e preconceitos da sociedade. Pergunto-te quanto ficou o último jogo a que assististe no estádio. Disseste-me que a tua equipa perdeu, mas que saíste de lá mais que feliz. Tinham jogado como jogam os grandes e tinham-te feito sonhar. Hoje, ninguém te consegue fazer sonhar.
E se eu hoje te disser que a noite é tua? Que esta noite está congelada para os teus sonhos?
Eutanásia. É tudo o que me pedes. Peço-te tempo. E a minha vida decorre normalmente. Não me sais da cabeça. O teu filho, do outro lado do mundo, a construir os seus sonhos, e tu aí, nesse estúpido quarto, que odeias, que não te entende. Tento usar a razão. Mas como poderá ser vista, eticamente, a eutanásia? Uma violação do direito à vida? Ou, por outro lado, como um direito, o direito à morte, o direito a usufruirmos da liberdade de escolha, do livre-arbítrio que parecemos possuir, mesmo quando a escolha seja o fim da vida? Penso em ti. No que estarás a fazer. Penso que ainda que seja inconcebível numa mente humana, tão afetada pelos sentimentos, aceitar que alguém próximo e amado decida pôr término à vida, a liberdade de escolha deve ser vista como o mais precioso numa vida humana, mais do que a própria vida, e por isso, cada ser humano, com toda a sua racionalidade, deve ter o poder de decidir qual o caminho a trilhar. Compreendo quem não aceite o teu pedido. Mas tinha-te prometido que esta noite era a tua noite. Não te ia falhar. Esta era a noite em que a vida não ia falhar. Foi assim que te tinha dito. Hoje vais sentir a vida no teu controlo. Foi a minha promessa. A vida hoje não falha. E falhou. Pedi-te para fechares os olhos. Para pensares no melhor que fizeste desde o dia em que nasceste. Podias pensar no dia em que conheceste a tua mulher, no dia em que casaste, no dia em que tiraste a carta, no dia em que nasceram os teus filhos. Podias pensar no dia do acidente. E a vida falhou. Retirei a agulha da tua pele, e confessei-te assim o segredo da morte. Código correto. Estavas morto. A vida falhou. Esta é a tua noite. Boa noite. Bons sonhos.
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