terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

ANTECIPANDO O DIA DOS NAMORADOS

LUÍS CUNHA
Abençoado modernismo brasileiro, que não só nos deu a conhecer o inimitável Macunaíma, pela mão de Mário de Andrade, e nos deslumbrou com as telas de Tarsila do Amaral, como nos legou também a fantástica sabedoria do amor contida no célebre poema de Oswald de Andrade:

Amor/Humor

Não sei se a literatura em língua portuguesa tem algum poema mais curto que este mas estou certo de que não é fácil ultrapassá-lo em assertividade e inspiração. Tiro na «mouche», é o que é. Prova provada de que, pelo menos neste campo, o tamanho não é realmente importante, o poema de Oswald contém todo um projeto de vida e uma inspiração de consumação existencial a que ninguém pode botar defeito: fazer sorrir o nosso par! Claro que não é apenas isso, pois o amor não é uma comédia de costumes. Pode até dizer-se que o mais decisivo se encontra noutro lugar do poema – sim, eu sei que é estranho, mas mesmo num poema tão pequenino podemos encontrar recantos escondidos! Do que falo é da dessacralização do amor, dessa arremetida contra a certeza da dor que parece prefigurar cada relação. Amar é sofrer de amor, dizem-nos. Sofremos pela dúvida, mas se não a tivermos sofremos pela convicção de que a certeza não pode durar sempre. Podemos também sofrer pela violência da paixão, muito embora não deixemos de sofrer quando essa mesma paixão nos ignora e nos passa ao lado. Afinal, talvez o sofrimento seja um alimento indispensável para a alma, mas se assim é que o riso seja o digestivo para tão pesado alimento! Amor/Humor? Sem dúvida que sim! Antes isso que um rebuscado lirismo, daqueles que sempre dão mau resultado!

Atente-se nos conhecidos versos do nosso maior vate:

Amor é fogo que arde sem se ver

Começa logo assim, armado em invisual. Todavia, ainda que vendo apenas de um só olho, não deixa de me parecer incrível que não tenha visto como o amor queima o olhar! «Fogo que arde sem se ver»?! Como pode alguém que amou de verdade não ter visto a sua amada em chama viva? Como lhe pode ter escapado que nesse mesmo fogo se consome o amante? Distração de poeta, bem pode dizer-se…

É ferida que dói e não se sente

Como? Ai não que não se sente! Insensível ou anestesiado poeta, o nosso! O caraças: a gente sente e vê a ferida, mexemos até nela, e como por vezes temos ainda os dedos sujos com as cinzas dos amores consumidos nas tais chamas que alguns não querem ver, acabamos por agravar dor e ferida...

É um contentamento descontente

Como diriam hoje os jovens, este Camões parte-me todo! «Contentamento descontente»? Será tal a demência de quem assim ama que já nem a alegria sente como alegria? Certo, concedo que por «contentamento descontente» não se deve entender, necessariamente, ficar trombudo depois do ato. Ainda assim, há-de ser, no mínimo, ficar seráfico e virar costas ao diabinho que nos puxa o sorriso alvar de quem se lambuzou todo de chocolate e menta e está com vontade de voltar ao pote!

É dor que desatina sem doer

Melhor não continuar eu a desatinar com o poeta, nem correr o risco de desatinar quem desse lado lê. Melhor ficar por aqui, até porque para ilustração já basta assim! Disse o que queria: que lirismo a mais corta qualquer onda que se forme, mesmo que esta fosse a do Canhão da Nazaré. Melhor amigo dos amantes é o humor que o pavor lírico de quem no sofrimento se compraz.

Num conhecido ensaio, Henri Bergson defende que "o riso não tem inimigo maior do que a emoção". Para ele, "numa sociedade de inteligências puras provavelmente deixaríamos de chorar, mas talvez continuássemos a rir; ao passo que um mundo de almas invariavelmente sensíveis, afinadas em uníssono pela vida, onde todo e qualquer acontecimento se prolongasse numa ressonância sentimental, não conheceria nem compreenderia o riso".

Pois é, se Bergson o diz quem sou eu para desdizer? Mas que sucede quando amor se conjuga com humor, como no brilhante achado de Oswald de Andrade?

Amor/Humor

Casamento espúrio, acham mesmo que é? Eu não acho. Para além de rimarem, amor e humor têm em comum o facto de só poderem ser feitos acompanhados. É claro que podemos ter prazer sozinhos e rir sem que ninguém nos acompanhe, mas mesmo nesses casos há uma dimensão evocativa que implica um outro. E depois há ainda o valor facial das palavras, a sua história e espessura. Todos nós sabemos (pelo menos assim espero...) como o amor carnal, esse tesão que nos devora e consome, se transmuta em humidade – seja ela suor, saliva ou tudo o mais. Ora bem, é ou não verdade que essa humidade tem a sua raiz em húmus, que não é senão a matriz latina da palavra humor?! Estão a ver? Poie é, isto anda tudo ligado. Mais, atrever-se-á alguém a declarar que o amor, na sua expressão vibrante de sexo consolador e festivo, não melhora o nosso estado de alma? Não há como negar: alegria e bom humor têm uma relação umbilical com o prazer, e este, mesmo recusando tomar a parte pelo todo, tem no sexo um importante pilar – juro que uso este «pilar» tem aqui um sentido arquitetónico, nada tendo a ver com estátua de Dom João Peculiar recentemente desaparecida de uma praça de Braga.

Posto isto… Um bom dia dos namorados para todos. Com amor, que sem ele não pode ser, mas também com humor, que é como o amor melhor sabe.

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