JOANA BENZINHO |
"Na Guiné já só te faltava mesmo esta experiência!" - disse-me entre risos um amigo meu quando lhe contei que tinha sido atacada por uma raia.
Na verdade foi a pior dor que senti até hoje, em 41 anos de vida. Uma dor lacinante que durou 6 horas mas que podia ter durado 12, se um simpático e prestável jovem não tivesse vindo a correr sugar o veneno que me entrava nas veias através do corte que o arpão da raia me deixou. Tem tudo a ver com a duração das marés, explicou-me. Ali, sem hospitais, médicos ou farmácias por perto nada mais me restava que me entregar à ciência bijagó. E a verdade é que foi exacta. Foram seis horas em que só me apetecia cortar o pé, onde sentia o veneno a ganhar caminho pelas veias e a tomar conta do corpo.
Passado este tempo e, com a chegada da preia mar, foi-se a dor, ficou só o corte profundo que ainda ando a curar. Do mal, o menos. Consegui de novo andar e até beber com gosto a caipirinha que me mandaram ao quarto.
Mas voltando agora ao comentário jocoso do meu amigo, de facto já vi de tudo e já me aconteceu de tudo na Guiné-Bissau.
Já vi nascer, aliás, ajudei a nascer no barco em que viajava, num cenário improvável entre galinhas, peixe e passageiros, com a ajuda da lâmina do comandante para cortar o cordão umbilical e os panos das mulheres que connosco viajavam a servirem para envolver o rapagão que veio ao mundo em alto mar; também já vi (infelizmente) morrer. Morrer por doenças, morrer em naufrágio, morrer sem se saber porquê, morrer por ter a má sorte de nascer num país em que a saúde não é uma prioridade para quem manda. Quem diria que alguém como eu, que evitou até ao limite do possível as aulas de medicina legal do quarto ano de direito por temer as autópsias, viria a ter que lidar de forma tão próxima com a morte.
Mas também já vi sobreviver, quase renascer. Nunca me esqueço da cara da jovem, na casa dos 30, que nos cuidados intensivos avançava vertiginosamente para a morte por falta de dinheiro por parte da família para comprar os medicamentos que a podiam salvar. Em contra-relógio, pedimos ao médico a prescrição do que lhe deveria ministrar, corremos para a farmácia e ainda mais de regresso ao hospital e conseguimos que o médico a devolvesse à vida.
Mas falando de coisas positivas - a grande maioria das experiências que tenho acumulado naquele maravilhoso país - ganha aquela em que o jipe começa a arder com um curto circuito nos fios da bateria e de noite, no meio do mato, e com 3 crianças no carro, surge um mini autocarro de militares, onde um deles era mecânico e por acaso (!) trazia ferramentas, tubagens, fita isolante e tudo o mais que foi necessário para o carro poder rolar até Bissau. É verdade que não tinham uma bateria suplente, mas tirou a do autocarro deles para por o nosso jipe em funcionamento e depois voltou a deixar lá a chamuscada que nos permitiu fazer os quilómetros que nos trouxeram sãos e salvos até casa.
Mas há tantas outras situações que me fazem acreditar que sou uma mulher de sorte por um dia ter decidido ir passar uns chuvosos dias de Agosto num país onde quase ninguém se lembrava de ir passar férias, a Guiné-Bissau.
Ali, sobretudo, conheci ali gente boa. Mesmo muito boa. Gente que dá grandeza e conteúdo à palavra resiliência.
E a verdade é que o improvável aconteceu e eu apaixonei-me irremediavelmente por aquele país, já lá vai uma década. E como em qualquer relação, há coisas boas e coisas más.
Mas nesta, as boas ganham e temos aqui um amor para a vida. Mesmo apesar do raio da raia.
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