terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

A VERDADE É UM PARADOXO

REGINA SARDOEIRA
A verdade muda. Não há um caminho único, uma única certeza. Cada homem é um abismo e cada abismo contém, a par da multidão das certezas, a multidão das incertezas. Correr atrás da verdade é o mesmo que vogar em círculo ao redor de um centro; e se o círculo se alarga com o tempo, nem por isso deixa de ser, apesar de tudo, círculo. Ora, apesar da noção de círculo arrastar atrás de si, inevitavelmente, a noção de centro, a verdade é que não existe um centro e talvez que tudo na vida, afinal, se caracterize pela ausência de centros ou pela sua multiplicidade infinita. A verdade muda – ficou dito. Mas enquanto não muda, no torvelinho atroador da ambição humana, ela permanece como alvo da procura. Acima de tudo, o vício heurístico de uma humanidade sedenta de certezas opõe-se às divagações, absolutamente necessárias quando nos agita uma réstia de fulgor imagético! E contudo, pobre daquele (ou muito rico em função da perspectiva individual, que esta questão da pobreza ou da riqueza nunca deixou de ser extraordinariamente relativa) pobre ou rico, portanto, de quem não assume o sonho e o separa, à força de trincheiras, da implacabilidade do mundo real. Eis o que o homem para si próprio construiu: um mundo real, com todo o peso alienatório que o termo "real " implica, separado por trincheiras do mundo, dito ilusório, do sonho. E sempre que a imaginação, incauta ou diligente, ultrapassa a barreira proibida, logo desce a vergasta e a obriga a respeitar os seus limites. A imaginação converte-se, deste modo, num precioso alvo a conquistar. Mas de que forma? Agora as brumas do sol interior são as leis sociais com que o mundo espartilha o pensamento…mas não haverá um outro espartilho, radicado no cerne do próprio indivíduo, comprimindo por dentro, o que por fora foi sendo gradualmente comprimido? Sim, por demais conhecemos esse outro liame interior. Ele arrasta, arrasta para o fundo a consciência, numa vertigem de descida abissal, penetra cada vez mais em baixo zonas íntimas onde a penumbra é cortada, a espaços, pela luz mais que potente do pensamento onírico. E não há nada a fazer. Nós tentamos, num esforço supremo, deter a avalanche que tudo empurra para o caos primitivo, tentamos a ordem do mundo interior, tentamos a ordem da lei colectiva. Mas o caminho irrevogável é o abismo, sabemo-lo. Esta sabedoria, que em nós é um lema de vida, não é pessimismo fundamental, antes conhecimento dialéctico da força irremissível que sempre dissolve a afirmação no seu contrário, e isto vem sendo afirmado ao longo de gerações dos mais sábios de entre todos, não são ideias novas, estas, subitamente apanhadas na corrente do pensar. A despeito disso, continuamos a ver o homem cheio de espanto e confusão quando o terramoto abala e torna em frágeis carcaças a razão da sua vida. Pois quê?! Então ele não sabia já que é tremor e caos a estabilidade em que se apoia? Sabe e sabia-o desde sempre; sabe-o nas profundidades mais recônditas de si mesmo, sabe-o porque a prática o confirma, violentamente, de vez em quando; sabe-o porque a teoria diariamente lho demonstra. Mas na sua cegueira pusilânime recusa-se a fazer dessa noção o verdadeiro ponto de partida. O homem é de natureza cobarde.


E agora eis que surge a inevitável pergunta: se é terreno incerto aquele em que o homem se apoia não será absolutamente vã toda a construção e absolutamente estéril qualquer busca de equilíbrio?


Somos nós – os que tomamos consciência da inconsciência em que o mundo se atola – que forçaremos à resposta essa questão dentre todas insolúvel! Paradoxo dos paradoxos! Pasmai, homens positivos, pasmai ó tecnocratas, pasmai ó competências institucionalizadas, ó obreiros da perfeição! Pasmai ante o paradoxo e ante quem vos afirma o paradoxo como essência e contra-essência do já feito e do devir! E, depois de terdes pasmado, continuai, hirtos, nos cadeirões estofados da vossa consciência, continuai o trabalho interrompido, olhai a cifra incompleta e, acima de tudo, vede bem o nó da gravata! A propósito: já almoçastes? Então cuidado, não vá o paradoxo interromper a vossa digestão e apressar o desenlace! É bem verdade que os paradoxos são indigestos, é bem certo que a vida é uma tremendíssima indigestão (ainda que para vós ela deslize sem nenhum fragor de tempestade.) Para vós?! Mas quem sois vós? Ah, não o pergunteis ainda, é muito cedo, estão encerrados os taipais das lojas da definição e vão abrir… sei lá, talvez não abram nunca!


Reparem: há demasiados narcóticos, demasiados mecanismos de esquecimento, muito ópio flutua à superfície viscosa dos oceanos da cultura. Não, nada de drogas! Este livro é um anti-livro, justamente por causa disso, quer sair do circuito e afirmar-se, fora dele: mas talvez não o consiga nunca! Pois como pode afirmar-se um anti-livro que, sob todos os aspectos, partilha com os seus contrários forma e conteúdo? Pois bem, deixemos isso, para já, resolvê-lo-emos depois. Faz ainda parte do paradoxo a afirmação do que é, afinal a sua própria negação.

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