terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

A BACTÉRIA E O HUMANO

REGINA SARDOEIRA
Gostava de ter guardado o sol desta tarde. 
Do mesmo modo que guardo imagens, para depois revisitar, numa evocação de carácter visual, pudesse eu armazenar o calor intenso que me abrasou por umas horas e soltá -lo depois, quando o frio regressar e a estrela -mãe estiver arredada dos meus sentidos. 
Daqui a algum tempo, passada esta irrupção diurna da Primavera, o frio estará comigo de novo - e sentir-me - ei injustiçada. 
Percebi que tenho necessidade do sol a jorros (já o percebi há muito!), pois nestes dias álacres, de horizontes límpidos e abóbada azul, tenho vontade de sair do casulo e ir à procura de mim, na senda da luz. O resto do tempo projecta - me para dentro, das paredes e do íntimo, deixo - me submergir em hibernação, envolvendo - me em mim, querendo dormir e despertar somente quando a luz fizer os meus olhos abrirem - se - e a pele e todos os sentidos. 
Se estes sentimentos me acometem é na medida exacta da minha natureza. O meu corpo, em repouso, é de uma mornidão vizinha dos 37 graus : a sua harmonia e conforto dependem de atmosferas desta calidez - um pouco abaixo. Sinto que 25 graus convêm à homeostasia das minhas células e que abaixo de 10 graus oscilo para regiões de desequilíbrio; e também sinto que, muito além dos 37 graus que me são estruturais, se dá a ruptura harmónica do organismo. 
Sou assim e, com alguns cambiantes, todos o somos. Necessitamos de condições adequadas ao nosso conforto, funcionamos à semelhança de uma máquina cujo equilíbrio funcional depende do combustível certo, da manutenção adequada, do trabalho para que foi programada. Nem mais, nem menos. 
Se escassear o alimento, se não pudermos beber, se formos acometidos por qualquer dor, o organismo exige o impulso homeostático pelo qual procuramos o alimento, a água, a panaceia. 
Essencialmente, é deste modo que nos definimos . Tudo o resto que foi acrescentado à nossa humanidade, a saber, a consciência, o raciocínio, a imaginação, e seus correlatos, a ciência, a arte, a poesia, perdem sentido e são remetidos para segundo plano, caso o organismo não seja capaz de realizar a homeostasia. 
António Damásio, no seu último livro, "A Estranha Ordem das Coisas (Temas e Debates, Círculo Leitores, Novembro 2017), prosseguindo a sua incansável investigação sobre a consciência, fala deste modo acerca das bactérias :
" Na sua orientação desprovida de mente para a sobrevivência, elas juntam - se a outras que se esforçam por alcançar o mesmo objectivo. Ao seguir a mesma regra implícita, a resposta do grupo aos ataques gerais consiste em buscar automaticamente força nos números, seguindo o equivalente ao princípio do menor esforço. Seguem à risca os imperativos homeostáticos."(pág 37)
Lendo esta análise sobre essa forma rudimentar de vida que é a das bactérias, percebi o que nos liga, sendo nós mais complexos, a tais organismos. De repente, quase comecei a supor que, enquanto organismos, teríamos bem mais sucesso, sem a consciência, o pensamento, o raciocínio. 
E Damásio prossegue:
" Os princípios morais e as leis obedecem às mesmas regras essenciais, mas não só. Os princípios morais e as leis resultam de análises intelectuais das condições enfrentadas pelos seres humanos e da gestão de poder por parte do grupo que inventa e promulga essas leis. Baseiam-se no sentimento, no conhecimento e no raciocínio, e são processados num espaço mental através do uso da linguagem." (pág 37)
Eis aqui os quatro factores que nos distinguem das bactérias : o sentimento (em primeiro lugar), o conhecimento, o raciocínio e a linguagem.
Pelo sentimento que nos faz experimentar carências, desequilíbrios, dores, fomos capazes de inventar, por exemplo, a medicina; o conhecimento e o raciocínio permitem - nos compreender e procurar o que nos favorece, eliminando o que provoca danos; a linguagem possibilita a comunicação e o acto de fixar pelas palavras o resultado das aprendizagens.
Porém, os avanços científicos recentes provam que também as bactérias fazem coisas inteligentes.
"Quando as bactérias detectam 《desertores》no grupo, ou seja, quando certos membros não ajudam no esforço da defesa, elas isolam - nas, mesmo que estejam genomicamente relacionadas e que façam parte da mesma família. As bactérias não colaboram com bactérias da 《familia》que não ajudem o grupo, ou seja, rejeitam as bactérias vira-casacas que não colaboram. Não obstante, as batoteiras acedem aos recursos energéticos e à defesa que o resto do grupo providencia a grande custo, pelo menos durante algum tempo." (Obra citada, pág 36) 
Assim, no nível bacteriano, já estão contidos os alicerces da nossa espécie, pelo que, conclui António Damásio, "(...) o inconsciente humano remonta realmente a formas de vida anteriores, de modo muito mais profundo e vasto do que Freud ou Jung alguma vez sonharam." (Obra citada, pág 39)
Eis porque o sol moderado, o céu azul, a temperatura morna convêm ao meu organismo, harmonizando, em equilíbrio, os mecanismos do meu corpo. Estando homeostaticamente segura posso então ( porque sou humana) lançar -me para universos emocionais, intelectuais, artísticos, esquecer a minha condição semelhante à das bactérias, até que novo desequilíbrio (um golpe de frio, um indício de fome ou de sede, uma dor de cabeça ) me lancem na corrida homeostática, tornando secundárias a inteligência, o raciocínio e a criatividade.

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