quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

ENSIMESMAMENTO

REGINA SARDOEIRA
Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente…
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Este soneto de Florbela Espanca tem, sem sombra de dúvida, todos os ingredientes adequados à beleza, à fantasia, à musicalidade, e são de tal ordem estes predicados que inspiraram e deram corpo a uma das mais belas canções da música portuguesa – Perdidamente, dos Trovante (ver e ouvir o vídeo inserido exactamente acima!). E, no entanto, o poema perde a sua grandiosidade ao atrofiar-se tristemente no terceto final! Reparem: Florbela Espanca enuncia o sujeito poético na sua universalidade e fá-lo, soberanamente, em 11 versos, através dos quais, literalmente canta o vigor e a alma da fome única de quem sente e, pelo sentimento, se transmuda. Mas depois, na chave do soneto, confina tudo ao seu próprio eu, atrofia o estro vibrante, o "ser maior e mais alto do que os homens, o condensar o mundo num só grito, o ter fome e sede de infinito, o esplendor de mil desejos" e por aí adiante, amordaça toda esta grandeza no seu "amar perdidamente", em que faz de outro eu "ser alma e sangue e vida em mim" e na urgência de o cantar para ser ouvido por toda a gente! O sujeito poético dilata-se, aparentemente, durante a maior parte do soneto e, quando esperávamos que ele se abrisse a uma odisseia mil vezes superior à que foi cantada, eis que Florbela Espanca mergulha no solipsismo, de onde afinal não tinha saído antes, mas para cuja ilusão nos projectou.


É claro que Florbela Espanca teria que suicidar-se, porque, a ser assim, tal como se enuncia, escrevendo, tinha que sofrer profundos desequilíbrios psicológicos: e o suicídio pode ser a porta de saída da loucura. Ela nunca abandonou o ensimesmamento, nunca soltou as amarras de si para si própria, em direcção ao Outro, todo o seu mundo é reflectido em si, apenas em si. E eis a dor, a melancolia, as trevas, a intensa e alucinante peregrinação por abismos tornados delirantes no seio de um narcisismo sem apelo. Se acaso ela houvesse um dia descoberto verdadeiramente o Outro e, através dele, todos os outros, sem dúvida aceitaria continuar viva, sem dúvida teria escrito outra chave para este soneto, apesar de tudo musicalmente magnífico!

Meus dias de rapaz, de adolescente, 
Abrem a boca a bocejar, sombrios: 
Deslizam vagarosos, como os Rios, 
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.

Nunca desperto de manhã, contente. 
Pálido sempre com os lábios frios, 
Ora, desfiando os meus rosários pios… 
Fora melhor dormir, eternamente!


Mas não ter eu aspirações vivazes, 
E não ter como têm os mais rapazes, 
Olhos boiados em sol, lábio vermelho!


Quero viver, eu sinto-o, mas não posso: 
E não sei, sendo assim enquanto moço, 
O que serei, então, depois de velho.


António Nobre, eis outro decadente, capaz de expandir em beleza a força da sua dor e cativar-nos por ela, mas caindo, também ele, nas linhas deste soneto, na omnipotência de um eu que não lhe permite viver. Observem que tudo neste poema é mera técnica, mero jogo de palavras, nada acrescenta, nada nos diz, em nada levanta o eu para lá da misantropia. Morreu muito jovem (33 anos), vítima de tuberculose, essa, que imolava os fracos e os punha cansados e famintos, cadáveres ainda vivos, soltando suspiros e cuspindo sangue! Este soneto traz a marca da doença e o estigma da fragilidade. Destino? Herança? Acaso? Talvez que se António Nobre pudesse ter ressuscitado da melancolia decadente e fatalista dos seus versos e erguido a ser em pose triunfante, a tuberculose não o houvesse derrotado e ele pudesse redimir a vida!

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!


Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura…
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!


Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado…
Abri-vos, portas d’ouro, ante meus ais!


Abrem-se as portas d’ouro, com fragor…
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!


Outro suicida, este Antero de Quental, aqui narrado por ele mesmo como o que bate vãmente às portas do ideal, aquele que, armado em cavaleiro andante, quer tomar de assalto para si próprio o Palácio Encantado da Ventura! E quer abrir a golpes as portas d’ouro do palácio gritando Eu sou o Vagabundo, o Deserdado… mas como podem não ser repletas de silêncio e de escuridão as portas dos palácios dos vagabundos, dos deserdados? Para lá do seu génio, para lá da limpidez da sua voz e do ritmo magnífico dos seus versos, a nota é o desalento, o emparedamento no eu, a incapacidade de transformar-se em Nós e aderir ao Todo. E que pode restar a tais seres senão, muito simplesmente, dar o tiro redentor na cabeça esvaída, ausentando-se de uma vida que não puderam viver em pleno?

O amor é uma companhia. 
Já não sei andar só pelos caminhos, 
Porque já não posso andar só. 
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa 
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo. 
Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. 
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. 
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela. 
Todo eu sou qualquer força que me abandona. 
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.


Alberto Caeiro também foi um ensimesmado e também morreu de tuberculose! E aqui, neste poema de amor, vemos como a fraqueza do eu se redime na amada e como tudo se esvai de modo desolador quando ela está ausente: "Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas. Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela." É terrível amar assim, é terrível ser/existir apenas através de um outro eu, a ele se apegar e dele viver ou nele se consumir! Bem sei que Alberto Caeiro é um fantasma de Fernando Pessoa, bem sei que ele se multiplicou infinitamente e este pobre desgraçadinho que plange pelos caminhos do seu triste mundo não teve sequer um corpo. Mas agora pensem: se Fernando Pessoa o criou como um outro de si, não haveria nele também um Alberto Caeiro pobrezinho e abandonando, amando e plangendo, por nada ser sem aquela que ama? E afinal também ele – o criador do fantasma – morreu na miséria de si!


Homens! A poesia é um instrumento, uma arma, um poderoso meio de transmissão de sentimentos do sujeito poético para o mundo!


Homens! O mundo está prenhe de terror, de raiva, de violência e de ódio!


Homens! O mundo já chora e geme, individual e colectivamente, por dores muito concretas que nenhuma redenção parece ter poder para sanar.


Escrevei, homens, escrevei, poetas, lançai para o mundo a voz e a palavra! Mas, se acaso for de dor o vosso canto e se acaso for apenas vosso e se de nada valer para redimir a dor universal do homem sitiado, guardai-a, ensimesmai-vos mais um pouco na magia dolente da vossa própria melancolia e só saiais da vossa toca quando fordes capaz de trazer gritos verdadeiros de catarse, em que o eu subjectivo e lamuriante seja a afirmação suprema do Ser e o sim à vida! ( E eu sei perfeitamente que Florbela Espanca e António Nobre e Antero de Quental e Alberto Caeiro são grandes nomes da literatura portuguesa e deles recebemos herança e neles nos revemos enquanto expressão sublime da língua que nos estrutura…mas não choremos por eles e com eles, porque o choro atrasa a tarefa de erguer os ombros e encarar de frente o prodígio extraordinário de sermos os porta-voz inflamados do futuro!)

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