(Num tempo em que o Acordo Ortográfico de 1990 volta à discussão à Assembleia da República, vale a pena reforçar a ideia dos imensos estragos que temos provocado na língua portuguesa)
ANABELA BORGES |
“A língua é um organismo vivo”, a professora explicava. E os alunos, naquele ponto, ficavam logo muito atentos.
E perguntavam, “Como assim, ‘vivo’? Como um animal?”.
“Sim”, respondeu a professora, “como qualquer ser vivo”.
“Uma língua nasce, cresce, modifica-se, envelhece”, continuava a professora, logo interrompida pelo aluno incrédulo sentado ao fundo da sala (aquele que punha sempre tudo em causa, mesmo quando se tratava do mais logicamente entendido por todos), “E morre?”.
“Morre.”, respondeu outro, sentado na fila lateral.
“Como o Latim!”, disseram alguns quantos em coro.
A professora sorriu, orgulhosa. Não raro, recorria ao Latim para explicar a origem de muitas das palavras. Os alunos sabiam que o Latim era uma língua morta. Mas ali falava-se da língua viva. A língua em movimento, praticada por mais de 240 milhões de falantes em todo o mundo; a quarta língua mais falada e segunda em reuniões de negócios, logo depois do Inglês. Estes dados relativos à Língua Portuguesa, todos recentes, eram apresentados pela professora com recurso a fontes, para que os alunos vissem da sua veracidade. E perguntava, “É, ou não, de termos orgulho na nossa língua e de a tratarmos bem?”, os alunos respondiam “Sim!”, ainda um tanto estonteados pela força dos números.
Daí para a frente, não foi difícil explicar os ‘processos de formação de palavras’, nem foi nada difícil para a professora dizer que era contra ‘acordos ortográficos’. Porque não há forma de uniformizar uma língua falada por cerca de 240 milhões de pessoas. O Português, nas suas variantes – europeia, africana e brasileira –, possui inúmeras pronúncias, sotaques, variedades linguísticas e um vocabulário riquíssimo, de uma riqueza impossível de quantificar. Cada país de Língua Portuguesa tem as suas especificidades. Vejamos:
Se não fosse a riqueza de vocabulário do mundo da lusofonia, a professora nunca poderia dizer “Estou cá com uma (a)zoeira na cabeça”, e nem poderia sequer queixar-se que tudo se devia ao banzé feito pelos alunos. Não poderia dizer que a sua mãe estava a ver a xepa, que era como lá por casa designavam a telenovela. E em vez da mochila que os jovens tanto prezam, talvez continuássemos a chamar alforge ao saco de levar os livros para a escola (um exagero certamente aqui, mas “mochila” não diríamos, que a palavra não é originariamente nossa). Nem poderíamos utilizar a palavra canoapara designar a curiosa embarcação que habitualmente se vê a sulcar o rio Tâmega. Ou dizer que comemos pipocas quando fritamos o milho.
“Da minha língua vê-se o mar. Da minha língua ouve-se o seu rumor, como da de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação”, escreveu Vergílio Ferreira. A língua portuguesa conjuga, em muitos aspectos, o sabor salgado e o cheiro da maresia. O caminho essencial, esse desconhecido que foi traçado com vigor e convicção: o mar. E o mar trouxe-nos muitas palavras.
Além das palavras do mundo lusófono, outras palavras estrangeiras, faladas um pouco por todo o mundo, vão entrando na nossa língua e fazendo parte do nosso vocabulário oficial. São os empréstimos. Os alunos não tiveram qualquer dificuldade em dar exemplos à professora: “croissant”; “paparazzi”; “boom”; “shopping”; e uma parafernália de expressões ligada ao mundo das tecnologias – “motherboard”; “backup”; memória RAM; “e-mail”. Ah, sem dúvida, os alunos são barra nisto! É como se tivessem nascido com um “chip” instalado, com todo um roteiro de palavras orientadas para o mundo das TIC (acrónimo para Tecnologias da Informação e Comunicação). E para explicar que eles, os jovens, têm bué de influência nas transformações da língua, a professora explicou também os processos de truncação. E explicou-lhes assim, “Vocês gostam de poupar nas palavras: cortam uma palavra a meio, ficam com metade e deitam a outra metade fora”. Mais uma vez, os alunos foram rápidos a dar exemplos, “Prof’; Net’; Face’; Insta’…”. E depois ficaram muito admirados quando a professora lembrou que “foto” é uma truncação de “fotografia” e “metro” de “metropolitano”. E quando acrescentou que ‘s’tor’ era uma espécie de truncação da gíria estudantil que significava “senhor doutor”, foi o pasmo geral, uma surpresa total, pois os alunos desconheciam tal significado do vocábulo que usam de forma tão recorrente. Habituam-se de tal modo à linguagem corrente, que acabam por esquecer o vocábulo original. Mas isso é o preço a pagar pela evolução natural da língua. E esse foi o pretexto para a professora explicar algumas palavras amalgamadas, que, por força do uso, por pragmatismo, por rapidez de comunicação (por vezes, por pura preguiça), se transformaram em vocábulos cuja origem se vai perdendo, como “telefone móvel” para telemóvel, ou “informação automática” para informática.
Tudo isto faz parte de um processo lento, estranhado e saboreado pelos falantes. É a evolução da língua. A língua perde e ganha novos vocábulos, e nós afeiçoamo-nos mais a uns do que a outros. E procuramos selecionar os que mais nos aprazem na prática da comunicação.
Lá mais para o final da aula, um aluno perguntou à professora, “E a palavra ‘s’tor’ como se escreve?”.
Boa pergunta! Isso foi logo o que a professora pensou, “Boa pergunta!”. E respondeu: essa palavra ainda não entrou oficialmente no vocabulário. E, desde já, vos digo: se entrar, será um problema para os linguístas conjugarem esta palavra com o Acordo Ortográfico (1990), pois iremos nós retirar um ‘c’ a sector e o professor passará a ser um ‘setor’?
Porque isto são mais de 800 anos de língua portuguesa, organismo vivo, sempre em evolução. E a evolução faz-se caminhando, não é com golpes de espada de desacordês.
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