ANABELA BORGES |
Eu queria falar respeitosamente de um tragédia sem nome.
nome: “palavra que designa seres, coisas, qualidades, estados ou acções; designação, denominação” (segundo o dicionário).
Não é fácil designar com um nome o que antes não conhecíamos, o que não esperávamos viver, o que não tinha nome.
E no entanto – tragédia sem nome – veio o demónio revelar-nos um inferno sem nome, paralelo ou antecedência.
O meio de Outubro: o fim-de-semana foi o inferno a arder em inúmeras direcções; chamas vorazes e fumos impossíveis tomaram conta de tudo.
Segunda-feira: a manhã acorda em cinza, no rescaldo de mais de quatro dezenas de vítimas mortais dos incêndios. cinza. cinza. cinza. Mais, depois do terror de Junho, quando pensávamos que pior seria impossível.
- queríamos não acreditar
- queríamos adormecer para não sentir
- queríamos não sentir o peso informe na consciência, que sentimos e não sabemos explicar
- queríamos apagar o luto com uma ingressão breve ao passado, mudar o que aconteceu; por umas horas ao passado, e depois ser-nos-ia devolvida a mansidão dos dias claros
- queríamos que uma chuva milagrosa, com a sua voz líquida e sonora, calasse tudo. Silêncio!
E ela veio: a chuva.
Todos os anos se põe a questão dos incêndios. É algo latente, barril de pólvora. Os mesmos problemas persistem, ano após ano, governo após governo. Ninguém teve ainda a coragem de encarar o problema de frente, de o controlar e resolver. Só que este ano foi mais mortal, muito mortal, tristemente, lamentavelmente. Este ano, condições atmosféricas adversas fizeram com que o problema ganhasse dimensões de catástrofe. Mas o cerne já estava lá “há c’anos”, sempre esteve lá, desde há muito tempo. Lembro-me de ser pequena e de os incêndios despertarem a cada dia soalheiro, a cada dia luminoso e seco. Lembro-me de as pessoas (os populares: os meus pais e os meus vizinhos) andarem em aflições a apagar incêndios a rodear casas e tudo, a rodear tudo. Isto é uma questão de fundo, não trabalhada, política, social e cultural.
Desonroso é o país que não protege os seus cidadãos. Não proteger é crime.
Eu não quero que cada dia de sol e bom tempo signifique “in-cên-di-o”, incêndio – inferno, dor, perda, morte. Isso é muito triste (para ser suave no adjectivo). Não, que sol e bom tempo pedem a alegria de viver os dias cheios de luz, a luz doirada deste Outono de 2017, que alguém, divindade ou circunstância cósmica, decidiu oferecer-nos.
Chuva, sol, vento, frio, calor… tudo é para ser vivido. Vivamos. Vivamos com o primor das horas que nos são concedidas. Vivamos cada dia, cada tempo, cada estação como nossos, com o direito fundamental à vida. Sem terrorismo.
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