JOANA BENZINHO |
Na Guiné as pessoas convivem e falam com desconhecidos com uma facilidade já pouco vista aqui no velho continente. E foi numa esplanada em Cacheu, enquanto comia um belíssimo peixe assado à beira do rio, que o senhor da mesa ao lado me desafiou a conhecer a mais bonita praia do país, o paraíso na terra, segundo as suas palavras. Trocámos dois dedos de conversa e mais os nove dígitos de telefone. Prometi que iria corresponder à provocação e, para espanto dele, uns dias depois, lá fiz 100 quilómetros para o apanhar no ponto de encontro combinado e seguirmos para "a praia". Apareceu-me de chapéu cáqui, cinto de cartuchos nos calções e uma espingarda ao ombro. Tentei disfarçar o incómodo e a surpresa ao mesmo tempo que lhe abria a bagageira para guardar a arma, argumentando que o carro estaca cheio e seria mais confortável. Riu-se e disse-me "um caçador nunca se afasta da sua arma", dando o assunto por encerrado e acomodando-se como podia no carro.
Seguimos por uma picada umas dezenas de quilómetros em região de Manjacos, até chegar àquilo que outrora percebemos ter sido uma estrada. Foi mesmo, disse-nos. Terá sido aberta por ele pessoalmente, para dar acesso ao tal "paraíso" e a uma tabanca remota onde moram umas dezenas de pessoas. O jipe ia galgando capim com o dobro do seu tamanho enquanto as aves fugiam assustadas com o barulho do motor, claramente pouco comum por aqueles lados. No meio do nada, mandou-nos parar e disse "o carro fica aqui, o resto temos que fazer a pé por umas pontes que construí há uns anos". E lá partimos rumo ao desconhecido com a esperança de ver algo que se assemelhasse ao paraíso.
O nosso amigo à frente, arma em punho, abria caminho para uma verdadeira aventura. As pontes já tinham tido melhores dias e atravessámos vários cursos de água em cima de lama, pedras e algumas tábuas, vestígios remotos dos antigos passadiços. A vegetação era farta e muito verde, por vezes ouvíamos barulhos e lá acelerávamos com medo que algum crocodilo tivesse escolhido viver por aquelas paragens. Escorregadela aqui, enterramento na lama ali, chegámos a uma bonita ponte, digna de um filme de indiana Jones. Felizmente resistiu esta, a do ponto de água mais largo e profundo. Menos mal.
Passada uma boa meia de caminho, ouviu-se o mar. E aceleramos o passo expectantes.
A verdade é que este nosso amigo não nos desiludiu. A paisagem era soberba. Um areal com uns 3 quilómetros de extensão com milhares de conchinhas a brilhar à beira mar, deixaram-nos com a respiração suspensa. De um dos lados da praia havia tarrafes (muitos) cheios de ostras agarradas às suas raízes. Na outra ponta muita vegetação e umas formações esponjosas de lama preta que ao longe aparentavam pequenos rochedos.
No meio a areia fina e o mar doce e quente a rolar mansinho. E muita, muita concha em perfeitas montagens nos ramos feitas pelo vento e pela força das marés. Uma praia única, sem dúvida. Selvagem, onde encontrávamos aqui e ali ossadas de peixes de grande porte e grandes búzios com um forte som de mar. Também javalis a beber água na rebentação . Ali perto encontrámos o único habitante da praia, com uma pele de pelicano a secar à porta pendurada numa árvore e umas galinhas e um a passear-se pela casa. Vive ali só, depois de a mulher ter partido para a capital. Toma conta da praia, diz-nos ele com toda a convicção.
Despedimo-nos e voltámos de novo ao areal para contemplar o oceano pela última vez e absorver na retina cada milimetro daquela beleza.
O regresso ao jipe foi tão atabalhoado como a chegada à praia. Escorregadelas, mais lama, mais barulhos suspeitos na água entre a vegetação, um descuido que nos fez perder o norte e desviar do nosso destino uns largos metros, e o nosso guia sempre com a espingarda pronta. Não ousámos perguntar o que temia. Mas todos pensámos no crocodilo ou na cobra como os mais prováveis encontros imediatos a evitar.
Voltámos radiantes a Bissau depois de o deixar em casa, também ele de coração cheio, por ter partilhado aquele segredo com alguém. Ganhou completamente o desafio. Mostrou-me um recanto único daquele país.
Talvez não consiga lá voltar sem ele, mas ficou-me na memória o nome que materializa a sua existência, mesmo não constando no mapa da Guiné-Bissau. Cachalam.
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